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Histórias fantásticas
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- VAIDADE, MEU PECADO PREDILETO...

- ANABELLE

- JUDAS

- OS QUATRO IRMÃOS E A IRMÃZINHA

- O CAVALO E A LUA

- O ESPÍRITO DO QUARTO 805 E AS CRIANÇAS-FANTASMA

- O PORTA-JÓIAS / CAIXINHA DE MÚSICA

- O GATO

- O RASTRO DE EDWARD ASHMORE

- A MISSA DAS SOMBRAS

- A FLOR DO TÚMULO

- A DAMA OU O TIGRE?

- CHEMOSH

- A BIOGRAFIA

- A NOIVA

- A AUTORA

- GATA RAINHA


 Pacino advogado do diabo

 

VAIDADE, MEU PECADO PREDILETO...

Dizem que não existe gente feia, mas Jorge era o exemplo vivo de que isso não passa de uma mentira piedosa. Com seus parcos 1,45 cm, o corpo e o rosto magricelas, a pele coberta de enormes sequelas de acne, os olhos arregalados, arredondados, com as órbitas muito projetadas para fora e um acentuado prognatismo dentário, era uma figura quase monstruosa e repulsiva. (E para piorar, já não era mais jovem, estava com 63 anos.) Certo dia, ao voltar do trabalho para casa, como sempre deu uma paradinha numa banca de revistas para bater papo com o vendedor, uma das únicas pessoas que lhe davam alguma atenção. Nisso chegou um homem desconhecido no pequeno bairro onde morava e entrou na conversa. Chamava-se Lúcio, tinha boa aparência, era falante e carismático, e, para grande espanto de Jorge, não o ignorava, como a maior parte das pessoas; ao contrário, era muito simpático com ele, chegou até a propor trocarem telefones para se encontrarem outras vezes e tomarem uma cervejinha. Deram-se bem, Jorge ficou feliz em ver que tinham muitas afinidades. E foi-se desenvolvendo entre eles uma amizade cheia de ecamaradagem, logo tornaram-se confidentes e Jorge acabou se afeiçoando muito a ele. Só estranhou um pouco que ele falava bem pouco de si, Jorge não sabia de onde ele vinha, o que fazia, quanto tempo ficaria na cidade... praticamente nada. E para completar, Lúcio tinha uma certa aura estranha e meio misteriosa, era um homem bastante diferente de todos os que já conhecera. Mas Jorge pouco se importou com isso, nem mesmo se deteve a pensar a respeito; afinal, era um amigo, alguém que lhe queria bem, que o divertia, o ouvia, confortava, dava conselhos, amenizava um pouco a sua triste solidão.

E assim, sentindo-se confiante e à vontade com o companheiro, Jorge acabou lhe contando sobre sua grande tristeza por ter uma aparência tão desagradável que provocava o desprezo das pessoas. Para sua surpresa, Lúcio falou que deixasse a amargura de lado, pois podia resolver completamente seu problema. Foi então que Jorge acabou
descobrindo, entre incrédulo e assustado, quem era aquele homem e a que vinha: Lúcio lhe propôs trocar de corpo com ele, desde que lhe concedesse sua alma ao morrer. Porém, logo Jorge voltou ao seu natural ceticismo, começou a rir e achar aquilo ridículo:
- Tá, Lúcio, conseguiu me enganar por um segundo, valeu, mas convenhamos, é uma brincadeira sem graça.
Então Lúcio ficou muito sério e respondeu:
- Olhe bem para mim.
E Jorge viu seus olhos ficarem vermelhos, brilhantes e incandescentes. Disse, batendo palmas:
- Parabéns, belo truque! Mas realmente não estou achando graça nenhuma, agora já chega.
Foi então que Jorge viu aquele homem boa pinta transformar-se em uma criatura horripilante e demoníaca, ficar assim por uns 20 segundos e logo voltar à forma humana. Empalideceu como uma folha de papal e literalmente gelou de medo. Fez menção de fugir, mas Lúcio segurou-o, com força mas sem machucar, e disse:

- Meu amigo, o inferno não é nada do que pensam, eu lhe dou minha palavra. Pense: se fosse um lugar tão ruim, você acha que tantas pessoas fariam pacto com o diabo?

- Na-na-não sei... 

Jorge continuava assustado, mas estava confuso, porque Lúcio falava com segurança, seriedade e de um modo que lhe despertou confiança. Além disso, seria verdadeiramente maravilhoso poder melhorar sua aparência, sua vida...
Lúcio continuou:
- Jorge, não vou lhe enganar, é verdade que no inferno há castigos, mas são muito brandos e... você não acha que o que lhe ofereço compensa enormemente? Veja exemplos de castigos: entoar preces de adoração a Satanás, ajudar a arrebanhar-lhe almas, esquecer todas as suas crenças anteriores, renegar expressamente a Deus (que aliás nada de bom lhe deu, só a feiúra, a solidão e tudo mais de ruim que uma aparência repulsiva traz...) Parece-lhe tão ruim assim a minha proposta?

Jorge então se convenceu. E assim, de uma hora para outra viu-se milagrosamente jovem, belo, alto, de corpo atlético, mas sem exagero de músculos, forte, cheio de disposição e saúde. Aos poucos sua vida foi mudando completamente: passou a receber atenção de todos, inclusive de mulheres atraentes, fez amigos, arranjou namoradas, até firmar-se com uma garota pela qual se apaixonou e era correspondido, estudou, fez vestibular para Veterinária (sempre adorara animais e tinha jeito com eles), formou-se, montou uma clínica para cães e gatos que,
devido ao seu empenho, meticulosidade e competência, foi muito bem sucedida (não ficou rico, mas com uma situação confortável e trabalhando no que lhe dava prazer), casou-se com a mulher amada, teve dois filhos bonitos e saudáveis, dava-se muito bem com a esposa, tinham afinidades, um amor sólido e profundo e atração física... enfim,
tinha uma vida simples, aconchegante e boa, justo o que sempre desejou, já quase nem lembrava do pacto feito no passado. Teve vida longa, partiu aos 93 anos, de morte suave (parada cardíaca).

Mas então... sua vida paradisíaca foi-lhe bruscamente arrancada. Diferente do que pensava, eis que o acordo com um ser aparentemente confiável, mas na verdade profundamente maligno, acabou cobrando seu preço, e não foi baixo. O lugar onde foi parar era indescritivelmente terrível, muitíssimo feio e desagradável, sombrio, inóspito, eternamente escuro, diferente de tudo que se conhece ou possa imaginar, de uma estranheza pavorosa e impossível de descrever. Para completar o horror, havia um grande número de espíritos lamentosos, de aparência viscosa, formas horríveis e tortuosas, que rastejavam como larvas (assim como estava Jorge agora), centenas de seres demoníacos impiedosos e de aparência abominável, que com voz horripilante e cavernosa blasfemavam contra Deus, às vezes com palavras chulas nojentas, escarneciam das almas perdidas e lhes infligiam os mais atrozes, insuportáveis e indizíveis sofrimentos, físicos e mentais, sem um segundo sequer de paz.

E... para sempre. Jorge houvera assinado uma sentença eterna.

 

 Dracula mina definitivo

 

ANABELLE

Era o cair de tarde de outono, em Paris. Em direção ao bairro de Saint-Germain, carros, já iluminados, rodavam, atrasados. Um deles parou diante do pórtico de um palacete elegante, cercado por jardins seculares. O arco da abóbada era encimado por um brasão de pedra, com as armas da antiga família dos condes de Athol: azulado, com a estrela deteriorada, de prata, e a divisa "Pallida Victrix", sob a coroa envolvida no arminho do barrete principesco. As portas pesadas se abriram. Um homem de 30 a 35 anos, de luto, com o rosto notavelmente pálido, entrou. No patamar, serviçais taciturnos erguiam tochas. Sem prestar atenção neles, galgou os degrauss e entrou. Era o conde de Athol. Cambaleando, subiu as escadarias brancas que conduziam ao quarto onde, naquela mesma manhã, ele deitara um caixão de veludo, envolvido em violetas, sua rainha de volúpia, sua pálida esposa, Anabelle, seu desespero. Todos os objetos estavam no mesmo lugar em que a condessa deixara na véspera. A morte se abatera fulminante. Na noite anterior, sua bem-amada desfalecera: os lábios tomaram bruscamente uma púrpura mortal. Ela mal teve tempo de dar no marido um beijo de adeus, sorrindo, sem uma palavra: depois os longos cílios cerraram-se sobre os seus belos olhos.

A jornada intolerável passara. Perto do meio-dia, o conde, após a terrível cerimônia no jazigo da família, dispensou no cemitério a escolta fúnebre. Depois, fechando-se sozinho com a amortalhada, entre as quatro paredes de mármore, puxou para si a porta de ferro do mausoléu. O incenso queimava sobre um tripé diante do caixão e Uma coroa luminosa de lamparinas estava na cabeceira da jovem defunta. Ele, de pé, pensativo, com o sentimento de uma ternura sem esperança, permaneceu lá o dia inteiro. Às seis horas, no crepúsculo, saíra do lugar sagrado. Ao fechar o sepulcro, retirou da fechadura a chave de prata e lançou-a no interior do túmulo., sobre as lajes interiores. Por quê?...
Com toda a certeza, depois de alguma resolução misteriosa de nunca mais retornar.

E agora revia a câmara mortuária. A janela, sob os vastos tecidos cor de malva brocados, estava aberta: um último raio da tarde iluminava, numa moldura de madeira antiga, o grande retrato da finada. O conde olhou, ao redor dele,
o vestido jogado na véspera sobre uma poltrona, as jóias sobre a penteadeira, o colar de pérolas, o leque semifechado, os frascos de perfume de que ela não mais se impregnaria. No leito de ébano, de colunas retorcidas, ainda desfeito, ao lado do travesseiro em que o lugar da cabeça adorada e divina era ainda visível no meio das
rendas, ele percebeu o lenço avermelhado pelas gotas de sangue dos padecimentos finais de sua jovem alma. Sobre o piano aberto, uma música para sempre inacabada; as flores colhidas por ela morriam nos velhos vasos de cristal; e,
ao pé do leito, sobre um tapete escuro, os chinelinhos de veludo. Os pés nus da bem amada brincavam com ele ontem de manhã, acarinhados e beijados pelos lábios do homem mais apaixonado deste mundo. O relógio da sala,
de que ele quebrara a mola para que não soasse outras horas.

O fato é que Anabelle partiu!... Para onde?... Viver agora? Para fazer o quê?... Era impossível, absurdo. O conde mergulhava em pensamentos estranhos. Refletia sobre a existência passada. Seis meses se escoaram desde o casamento. Fora no estrangeiro, no baile de uma embaixada, que a vira pela primeira vez... Esse instante ressuscitava diante de seus olhos com clareza. Ela lhe aparecia resplandecente. Naquela noite seus olhares se encontraram, encantaram-se mutuamente, reconheceram-se como de natureza íntima semelhante, nasceu um amor profundo e raro. - Deviam se amar para sempre, pensou o conde. E bem rápido se uniram. Isolaram-se, logo depois do casamento, naquele velho e sombrio palacete, no qual a espessura dos jardins amortecia os ruídos do exterior. Ali os dois amantes mergulharam no oceano das alegrias lânguidas e devassas em que o espírito se mistura à carne. Exploraram a violência dos desejos, os frêmitos e as carícias desvairadas. Tornaram-se pulsação um do outro. Neles, o espírito penetrava tão bem no corpo que suas formas pareciam-lhes quase sagradas, e os beijos, malhas abrasadas, uniam-nos numa fusão total. Longo deslumbramento! De repente, o paraíso foi-lhes bruscamente roubado; o acidente terrível separou-os; os braços se desenlaçaram. Que sombra lhe arrebatou a morta querida? Morta! Não. A alma dos violoncelos é arrancada no grito de uma corda que se rompe?

As horas passaram. Ele olhava pela vidraça a noite que avançava no céu. No entanto, a noite tinha hoje tinha um aspecto muito diferente, estranho. E de repente, ele vê a imagem etérea de uma mulher. Parecia-lhe uma rainha caminhando, com melancolia, no exílio. Com a fivela de diamante em sua túnica de morte. Vênus, sozinha, brilhava acima das árvores, perdida no fundo do firmamento. - Deus do céu, é Anabelle! - pensou, aterrorizado. Mas o medo foi lentamente sendo acrescido de uma espécie de encantamento febril, e a este nome, apenas murmurado, estremeceu como um ser que desperta. Depois, levantando-se, olhou ao redor. Os objetos, no quarto, iluminados por uma luz até então mortiça e imprecisa azulando as trevas, de repente pareceram tomar mais luminosidade. Eram a lamparina, com odor de incenso, e um biombo com imagens de santos, relicário familial de Anabelle. O tríptico, de velha madeira preciosa, suspenso entre o espelho e o quadro. Um reflexo dourado interior caía sobre o colar, entre as jóias da penteadeira. A auréola da Madona brilhava, rosácea, na cruz bizantina cujos finos e vermelhos lineamentos, incorporados ao reflexo, projetava uma tonalidade de sangue no brilho intenso das pérolas. O conde, ante essa visão totalmente inusitada e perturbadora, tocado pelas evocações dolorosas até o mais secreto da alma, soprou rápido a luz santa e, às apalpadelas, na sombra, estendendo a mão em direção a uma corda, tocou a campainha. Um velho servidor da mansão apareceu, trazendo um candeeiro. Foi com um calafrio de estranheza que viu o senhor de pé sorrindo, como se nada tivesse acontecido.

- Bernard! - finalmente conseguiu dizer, indeciso e num fio de voz, o conde. - Esta noite estamos cansados, a condessa e eu; você servirá a ceia aí pelas dez horas. A propósito, resolvemos nos isolar mais tempo, aqui, a partir de amanhã. Nenhum dos servidores, além de você, deve passar a noite na casa. Você lhes dará os salários de três anos e que eles se retirem. Depois, você colocará a tranca de ferro na porta e acenderá o candelabro na sala de refeições. Não receberemos ninguém a partir de agora. O velho tremia e o olhava atentamente. O conde acendeu um charuto e desceu ao jardim. Bernard pensou que a dor muito pesada, o desespero, haviam extraviado o espírito e a mente de seu senhor, que o choque repentino poderia ser-lhe fatal. Seu dever, pensou a princípio, era respeitar o segredo do amo, a quem conhecia desde criança e por quem tinha muito afeto. Abaixou a cabeça. Depois começou a refletir, a mente confusa: cumplicidade devotada a um homem delirante? Obedecer?... Continuar a servi-lo sem levar em consideração a morte? Que ideia estranha. Resistiria uma noite?... Amanhã, amanhã, ai de mim!... Quem sabe?... Talvez... Projeto sagrado, de afeto e de amizade, apesar de tudo... Será que tenho direito de sequer questionar esse assunto?... Desistiu de chegar a alguma conclusão, apenas saiu do quarto, executou as ordens religiosamente e, naquela mesma noite, a insólita existência começou. Tratava-se de criar uma miragem terrível e macabra. Mas o constrangimento e o medo dos primeiros dias acabou se amenizando. Bernard, inicialmente com estupor, depois com uma espécie de deferência e ternura, disciplinou-se em ser natural, até o ponto em que ele próprio também se sentia, em alguns momentos, iludido daquela realidade delirante. Porém às vezes tinha sensações estranhas, sentia uma espécie de vertigem, tinha necessidade de se dizer que a condessa estava realmente morta. Aderira ao jogo fúnebre e vez por outra quase esquecia a realidade. Logo houve necessidade de ainda mais reflexão e ainda auto-sugestão para se convencer e se recuperar. Percebeu que acabaria por se abandonar ao magnetismo terrível com que o conde impregnava a atmosfera ao redor deles. Tinha medo... por enquanto, um medo indefinido, indeciso, brando. Athol, de fato, vivia absolutamente inconsciente da morte de sua bem-amada. Achava-a sempre absolutamente presente. À tarde, num banco do jardim, nos dias ensolarados, lia, em voz alta, as poesias que ela amava; à noite, perto do fogo, duas xícaras de chá na mesinha de centro, ele conversava com a ilusão sorridente, sentada na outra poltrona. Os dias, as noites, as semanas passavam, lentas, e a rotina se mantinha. Em dado momento, fenômenos estranhos e singulares começaram a acontecer, e era difícil distinguir o ponto onde o imaginário e o real se diferenciavam. Uma presença flutuava no ar: uma forma se esforçava por preparar sua urdidura no espaço tornado inexplicável. Athol vivia como um abençoado, um iluminado, porém num estado de espírito febril e doentiamente exaltado. Um rosto magro e pálido, mas risonho e deslumbrado, entrevisto como o raio, entre um e outro piscar de olhos. Um fraco acorde tocado ao piano, de repente; um beijo que lhe fechava a boca no momento em que ia falar. O desdobramento de si próprio era tal que ele sentia o perfume vertiginosamente doce da bem-amada ao seu lado, e, à noite, entre a vigília e o sono, palavras ouvidas em um tom baixo: tudo o advertia. Era a negação da morte elevada enfim a uma potência desconhecida.

Certa feita, Athol sentiu-a e viu-a tão bem ao seu lado que a tomou entre os braços: mas esse movimento dissolveu-a.
- Criança! - murmurou, sorrindo.
E tornou a adormecer como um amante repelido pela amante risonha e sonolenta. No dia de seu aniversário colocou um buquê de sempre-vivas no travesseiro de Anabelle.
- Pois ela pensa que está morta - disse.
E aos poucos, a vida e a presença de sua mulher no palacete solitário tomavam uma existência cada vez mais palpável, acabou por adquirir um encanto sombrio e persuasivo. O próprio Bernard já não sentia qualquer espanto, tendo-se gradualmente habituado à situação. Um vestido de veludo percebido na curva de uma alameda; uma voz risonha que o chamava no salão; um toque de campainha de manhã, ao despertar, como antigamente, tudo isso se
tornara familiar, a morte brincava com o invisível, como uma criança. Ela se sentia tão amada! Era natural.

Um ano se escoou. Na noite do aniversásrio, o conde, sentado perto do fogo, no quarto de Anabelle, acabara de ler-lhe um romance florentino medieval, em verso: "Calímaco." Fechou o livro e depois, ao se servir de chá, disse: - Duschka, você se lembra do Vale-das-Rosas, da imagem do Lahn, do castelo das Quatro Torres? Essa história lembrou tudo para você, não é? Levantou-se e, no espelho azulado, viu-se mais magro e pálido do que o normal. Apanhou o
bracelete de pérolas no porta-jóias e olhou as pérolas atentamente. Anabelle não as tirara do braço, há pouco, antes de se despir? As pérolas ainda estavam tépidas pelo calor da carne. E a safira desse colar oriental cintilava, parecendo ter estado pouco antes sobre os belos seios de Anabelle. Naquela noite a safira brilhava mais do que nunca, como se o magnetismo da bela morta a penetrasse ainda. Ao pousar o colar e a pedra preciosa, o conde tocou por acaso o lenço de cambraia cujas gotas de sangue estavam úmidas e vermelhas como cravos na neve. Sobre o piano, quem virou a página final da antiga partitura? Como? A lamparina sagrada se reacendera, no relicário. A chama dourada iluminava misticamente o rosto, de olhos fechados, da Madona. E que mãos colocaram essas flores recentemente colhidas, que desabrochavam ali, nos velhos vasos de cristal? O quarto parecia alegre e dotado de vida, de maneira mais significativa e mais intensa do que de hábito. Mas nada surpreendia o conde. Tudo lhe parecia tão normal que nem prestou atenção na hora que soou no relógio parado havia um ano.

Naquela noite, no entanto, poder-se-ia dizer que, do fundo das trevas, a condessa Anabelle se esforçava por retornar a este quarto embalsamado. Deixou ali tanto de sua pessoa! Tudo o que constituíra sua existência a atraía para ali. Seu encanto flutuava nele; as longas violências provocadas pela vontade apaixonada do marido deviam ter afrouxado os vagos liames do invisível ao redor dela... Tudo o que ela amava estava ali. 

E no entanto, de repente, justo nesse momento que deveria ser o mais feliz, intenso e mágico, o conde de Athol estremeceu, sentiu uma espécie de vertigem, uma sensação de desfalecimento iminente, algo como o momento que
antecede a morte. Foi surpreendido por um apavorante clarão da mente, uma reminiscência fatal. E, hesitante, em voz muito baixa, fraca e lenta, disse:
- Deus! Agora me lembro!... O que há comigo? É tão confuso e estranho... Tenho tanto medo.... Mas-mas-mas... vo-vo-vo-cê está... ó Deus! Você está... ajudai-me Senhor, por misericórdia! Você está... Anabelle, você está... morta!
Ele se deu conta, numa dor lancinante e persistente, que estava só, irremediavelmente e para sempre só. Tudo se esvaíra, a atmosfera agora era a do mais sombrio dos velórios. A dor era profunda, negra e insuportável.
- Oh! - murmurou ele -, então acabou! Estou perdido!... Sozinho! Qual é o caminho agora para chegar até você, amada? Por Deus, haverá alguma forma? E suplicou, como para si mesmo, ou para os céus, em desespero e sem um pingo de esperança: - Mostre-me o caminho!

Então, de repente, espantosamente um objeto cor de chumbo meio enferrujado caiu pesado no leito nupcial, sobre o edredom de pele. Um raio do terrível dia lhe ofuscou a mente e os sentidos e quase o fez desfalecer. Ele se abaixou, colheu o objeto e reconheceu: era a chave do túmulo.

 

 

O beijo de Judas - Caravaggio

 

JUDAS

Na ilustração acima, a pintura "O beijo de Judas", de Michelangelo Merisisi de Caravaggio


Estava no museu contemplando extasiado o belo quadro de Merisi de Caravaggio, "O beijo de Judas". De repente, uma voz soou atrás de mim, uma voz baixa e com ar cansado.
- Não é verdade, cavalheiro, que tenho uma certa semelhança física com o discípulo traidor do Filho de Deus?
Quem falava era um homem idoso, alto, cabelos e barba da cor do açafrão, olhos salientes, pele flácida, amarelada pela icterícia. E, esboçando um sorrindo, porém com olhar indisfarçavelmente triste, continuou:
- Prazer, chamo-me Antero.
- Prazer, Danilo - respondi. - e ele:
- Mas não desconfie de mim... Acredite que no fundo sou um bom homem.
E agarrando meu braço, como se fôssemos amigos, convidou-me para um drink. Acompanhei-o meio a contragosto, apenas para ser gentil e dar um pouco de atenção a um idoso com ar depressivo. No café, ele me contou sua história, entre um e outro gole de gim tônica. Nâo tinha nacionalidade conhecida; nascera de qualquer mãe de de qualquer pai, não sabia onde. Vivia sozinho no mundo, sem mulher, sem filhos, sem amigos. Praticava medicina, embora não fosse médico. Viajara muito, viajava sempre. Tinha 92 anos e a vida o entediava. Já tentara uma vez se suicidar por enforcamento.
- Eu já lhe disse - concluiu - que não tenho amigos. A maioria dos homens me inspiram um profundo desprezo e desesperança quanto ao ser humano. Mas o senhor, não sei por quê, me pareceu simpático, tem cara e jeito de bom e inteligente. Assim como me pareço com o discípulo traidor, o senhor se parece com o Mestre sublime. E eu preciso, para ter alguma felicidade, para me redimir da vida perdida, sentir algum afeto nobre, amar alguém, ter um amigo que seja. E, segurando-me as mãos e apertando-as nervosamente entre as suas, acrescentou:
- É..., mesmo que o senhor não queira, serei seu amigo, seu irmão...
A regeneração do mundo está no amor! Eu passei a vida me afastando dos homems... Se conseguisse amor estaria salvo! E em voz mais baixa ainda, como se falasse consigo mesmo:
- 92 anos de luta e angústia já são castigo suficiente...! Oh, Pai de todos, tenha piedade de mim!
Pensei que aquele homem estava louco ou com demência senil, e, para dar fim à estranha e deprimente conversa, somente por caridade ofereci-lhe minha amizade, e me despedi dele prometendo voltar depois de três ou quatro dias àquele café. Antero apertou-me comovido as mãos, tentou abraçar-me, mas eu me afastei, o mais disfarçadamente que
pude.

E, para minha grande contrariedade, desde aquele dia estranho começaram a acontecer-me contratempos, dificuldades, situações que poderiam até evoluir para muita complicação e até mesmo ruína, humana e financeira. Evidente que antes eu já havia passado por situações difíceis, mas nunca nessa quantidade, intensidade e tão próximas umas das outras. Pensei que só poderia ser coincidência, mas se por acaso não fosse, quem sabe Antero possuísse algum dom sinistro, o que os italianos chamam de "jettatura", e viver com ele era viver na companhia do infortúnio e da dor. O fato é que penei muito durante os três meses em que fomos "amigos". Porém, dando-lhe uma chance, assim como temendo algum ressentimento, quiçá alguma tentativa de vingança daquele homem (que toda pessoa rejeitada é capaz de atos retaliativos), mantive-me amigável e cordato, a tal ponto que me portava como alguém sem personalidade, sem vontade, e mais ainda, não me atrevia a fazer nada sem seu consentimento e seu
conselho. Por sua sugestão, coloquei meu modesto capital em ações de uma empresa. Mas, como eu deveria ter previsto, ela quebrou em pouco tempo, e com tal quantidade de dívidas e compromissos que acabei na miséria, tendo que começar tudo do zero.

Mas isso ainda não era nada. A partir de então, eis que começaram a acontecer coisas muito mais graves, terríveis, tornando-se então impossível para mim não associar tudo isso à presença daquele homem. Veio a tragédia: no intervalo de dois meses, morreram minha mãe, minha mulher e meus quatro filhos, atacados de hepatite B. E durante todo esse tempo, Antero, que, como antes já foi dito, praticava medicinha, atendeu solícito, intensivamente, sem descanso, aos doentes, cuidando deles com carinho, utilizando todo seu conhecimento e competência, fazendo também as vezes de enfermeiro. Quando da morte de meu último filho, ele, completamente desesperado - mais
desesperado até do que eu -, atirou-se em meus braços, declarando-se responsável por todas as desgraças que ocorriam.
- Eu sou um ser funesto... sou um maldito... Deus me odeia, Deus não perdoa, não existe misericórdia n'Ele. Jeová, com um sorriso poderoso de de sadismo e satisfação, pôs em mim o mal sem fim, a infelicidade eterna. Mesmo eu tendo tido uma vida correta, sendo um bom homem, apesar de recluso... mesmo eu tentando redimir-me de
alguma possível culpa através do amor, afeiçoando-me a você, sendo seu amigo leal, seu irmão... e lhe trouxe desgraça, trouxe desgraça para esta casa. Ninguém pode ser feliz com meu amor.
E chorava copiosamente, profundamente angustiado. Então eu, apiedado e curioso ante palavras de sofrimento tão visceral, de afirmações tão convictas e ressentidas sobre Deus, perguntei:
- Mas afinal, isto tudo tem algum significado? Você é um mistério para mim. Não sabes nada sobre quem és?
Ele continuava chorando, agora convulsivamente, como uma criança, como se seu infortúnio não tivesse chance de fim nem solução.
Ele demorou uns 15 segundos antes de falar, até que...
- Então, Danilo, não me reconheceste? Não por minha vontade, e sim pela de Deus, que me impôs o mais pesado dos estigmas... eu sou o mal, a desgraça, o imprevisto cruel, a morte... Sou Judas, o que vendeu Cristo por trinta moedas! Veja meu pescoço... Ainda conserva a marca da corda com que tentei me enforcar, sinceramente arrependido de minha traição. Mas, desgraçado de mim, abominado profundamente por Deus, que, vingativo, impiedoso, cruel, jamais quis me perdoar. Além de eu levar a desgraça aos próximos de mim, estou condenado a viver para sempre.
- Não! - gritei, entre enlouquecido e compadecido. - Tua última hora chegou, afinal! Morrerás pelas minhas mãos. Querendo ou não, foste o assassino da minha mãe, da minha mulher, de meus filhos! E ao mesmo tempo oferecer-te-ei afinal o descanso e a paz.
- Sim! - gritou Judas. - Mata-me, por caridade!
Atirei-me sobre ele, apertando-lhe o pescoço com ambas as mãos. E fiquei apertando por muito tempo, até que afinal deixei-o cair no chão, sem vida.

E, por ter livrado a humanidade daquele homem maldito, por ter matado Judas o traidor, por ter tido compaixão e oferecido lenitivo a um ser humano, trouxeram-me para cá, para este manicômio.

 

 

Menina maligna

 

OS QUATRO IRMÃOS E A IRMÃZINHA

O dia inteiro os quatro filhos débeis mentais do casal Mazzini-Ferraz ficavam sentados num banco do pátio. Tinham a língua entre os lábios, os olhos de órbitas projetadas e movimentavam a cabeça com a boca aberta. O pátio era de terra, fechado do lado oeste por um muro de tijolos. O banco ficava paralelo ao muro, a cinco metros, e ali eles se mantinham imóveis, os olhos fixos nos tijolos. Como o Sol se ocultava por trás do muro, quando declinava os idiotas faziam festa. A luz ofuscante chamava a atenção deles no princípio, e pouco a pouco os olhos se animaram; riam por fim estrepitosamente, congestionados pela mesma hilaridade ansiosa, olhando para o Sol em alegria pura e Inocente.Outras vezes, enfileirados no banco, caçoavam horas inteiras, imitando um bonde. Os ruídos fortes sacudiam também sua inércia, e então corriam, mordendo a lingua e soltando bramidos, ao redor do pátio. Mas quase sempre submergiam em sombria letargia, e passavam o dia inteiro sentados no banco, com as pernas pendentes e quietas, empapando com saliva viscosa as calças.

O mais velho tinha 12 anos, e o mais novo 8. Em todo o aspecto deles, sujo e desamparado, notava-se a falta absoluta de algum cuidado maternal. Esses quatro idiotas, no entanto, foram um dia o encanto dos pais. Com três meses de casados, Mazzini e Berta orientaram seu rígido amor de marido e mulher para um futuro bem mais vital: um filho, que deveria vir a trazer-lhes uma intensa e plena felicidade. Assim se sentiam Mazzini e Berta, e, quando o filho chegou, aos 14 meses de casamento, acreditaram consumada sua felicidade. O bebê cresceu bonito e radiante, até um ano e meio. Mas no 20º mês o menino foi sacudido uma noite por convulsões terríveis, e, na manhã seguinte, já não conhecia os pais. O médico o examinou com atenção profissional, buscando as causas do mal na hereditariedade.

A inteligência, a alma e até mesmo o instinto da criança foram-se embora. Ele ficou profundamente idiota, babão, pendente para sempre sobre os joelhos da mãe.
- Filho, meu filho querido! - soluçava ela, sobre aquela espantosa ruína que era o seu primogênito.
O pai, desolado, acompanhou o médico até a rua.
- Para você posso dizer. Acredito que é um caso perdido. Poderá melhorar, educar-se em tudo o que a idiotia permitir, mas não mais do que isso.
- Sim!... Sim!... - concordava Mazzini. - Mas me diga: você acredita que é hereditário?
- Não posso afirmar nada, mas um dos pulmões da mãe não respira bem. Não vejo nada mais, porém a respiração é um tanto áspera. Faça-a ser bem examinada.
Com a alma destroçada de remorso, Mazzini duplicou o amor pelo filho, o pequeno idiota que pagava pelos excessos do avô, o que Mazzini não quis contar ao médico. Teve ainda de consolar, sustentar sem trégua Berta, ferida no mais íntimo por aquele fracasso de sua jovem maternidade. Como é natural, o casal pôs todo o amor na esperança de outro filho. Ele nasceu, e sua saúde e limpidez do sorriso reacenderam o futuro. Mas aos 18 meses as convulsões do primogênito se repetiram, e, no dia seguinte, amanheceu idiota. Desta vez os pais caíram num desespero profundo. Seu sangue, seu amor, estavam amaldiçoados! Ele com 28 anos, ela com 22, e toda a apaixonada ternura não era suficiente para gerar vida normal. 

Do novo desastre brotaram outras labaredas do dolorido amor, um louco desejo de redimir de uma vez por todas a santidade de sua ternura. Resultaram gêmeos, e ponto por ponto se repetiu o processo dos dois mais velhos.
Mas, acima da imensa amargura, restava a Mazzini e a Berta grande compaixão por seus quatro filhos. Houve necessidade de arrancar do limbo da mais profunda animalidade não as almas, mas o próprio instinto abolido. Não sabiam engolir, mudar de lugar, nem mesmo sentar. Aprenderam por fim a caminhar, mas esbatiam em tudo, por não pereberem os obstáculos. Quando eram lavados soltavam gritos até injetar o rosto de sangue. Animavam-se apenas ao comer, ou quando viam cores brilhantes ou ouviam trovões. Riam então, radiantes de perfeita e celestial alegria. Tinham, em compensação, certa faculdade de imitação. Nada mais do que isso, porém. Com os gêmeos parecia
concluída a pavorosa descendência. E eis que, como é de se prever nesses casos, suas relações começaram a se azedar. Até esse momento cada qual assumiu para si a parte que lhe correspondia na desgraça dos filhos; mas a desesperança de redenção diante das quatro bestas que nasceram deles empurrou para fora a imperiosa necessidade de culpar o outro, que é o patrimônio específico dos espíritos inferiores. A coisa se iniciou com a modificação de pronomes: seus filhos. E como, além do insulto, havia a perfídia, a atmosfera se carregava.

- Parecem-me - disse uma noite Mazzini, que acabara de entrar e lavar as mãos - que você poderia limpar melhor os rapazes.

Berta continuou lendo como se nada ouvisse.

- É a primeira vez - respondeu depois de algum tempo - que vejo você se preocupar com o estado de seus filhos.
Mazzini voltou um pouco o rosto para ela, com um sorriso forçado. 
- De nossos filhos, não lhe parece?
- Pois bem: de nossos filhos. Agrada-lhe assim? - ela levantou os olhos.
Desta vez Mazzini expressou com clareza:
- Você não vai dizer que a culpa é minha.
- Ah, não! - sorriu Berta, pálida. - Mas eu também tenho culpa, suponho!... Não faltava outra coisa!... - murmurou.
- O que não faltava?
- Que se alguém tem culpa, não sou eu, entenda bem! Isso é o que eu queria dizer.
O marido olhou-a por um momento, com brutal desejo de insultá-la.
- Deixemos de lado! - articulou, secando por fim as mãos.
- Como você quiser. Mas se quiser dizer...
- Berta!
- Como quiser!
Este foi o primeiro choque, e depois vieram outros. Mas nas inevitáveis reconciliações suas almas se uniam com duplo arrebatamento e loucura por outro filho. Nasceu assim uma menina, bonita, saudável, radiante. Viveram dois anos com a angústia à flor da alma, esperando sempre outro desastre. Nada aconteceu, no entanto. A garota se tornava cada dia mais linda, e os pais a trataram com toda a condescendência e permissividade, fazendo-lhe todas as vontades, como uma filha única, e também querendo compensar o passado terrível. Esse tratamento excessivamente tolerante, a pequena levava aos extremos limites do mimo da má criação, e acabou tornando-se insuportável - o que os pais, embevecidos, não reparavam sequer minimamente, tamanho era o seu enlevo por aquela criaturinha tão bela e perfeita, e que além disso veio lhes trazer a redenção depois de tanto sofrimento. 

Se ainda nos últimos tempos Berta cuidava sempre dos filhos, quando nasceu Isabel se esqueceu quase totalmente dos outros. Bastava a recordação para horrorizá-la, como algo atroz que a obrigaram a combater. Com Mazzini, ainda que em grau menor, passava-se a mesma coisa. Nem por isso suas almas se apaziguaram. A menor indisposição da filha botava para fora, com o terror de perdê-la, os rancores da descendência apodrecida. O fel se acumulara tempo demais para que o recipiente não ficasse distendido, e ao menor contato o veneno se derramava para fora. Desde o primeiro desgosto empeçonhado já se esboçava uma perda de respeito mútuo. Mas se antes se sentiam contidos pela falta de êxito, agora que o êxito chegara, cada qual, atribuindo-se a si próprio, sentia maior a infâmia das quatro monstruosidades que o outro o forçara a criar. Com estes sentimentos deixou de haver para os quatro filhos maiores qualquer afeto. A criada os vestia, dava-lhes de comer, deitava-os, sem muito cuidado ou carinho. Quase nunca eram lavados. Passavam quase todo o dia sentados no muro, privados de qualquer remota carícia. Quando Isabel fez 4 anos, nessa noite, resultado das guloseimas que os pais achavam absolutamente impossível negar-lhe, a menina teve calafrios e febre. E o temor de vê-la morrer ou se tornar idiota tornou a reabrir a eterna chaga. Mazzini estava inquieto, e fazia três horas que não parava de andar de um lado para o outro, em fortes passadas. 

- Meu Deus! Você não pode caminhar mais devagar? Quantas vezes já pedi?
- Bem, é que me esqueço. Não faço de propósito.
Ela riu, com desdém.
- Não acredito em você!
- Nem eu, nunca acreditei em você... tisiquinha!
- O quê? O que você disse?
- Nada!
- Sim, ouvi alguma coisa! Olha, não sei o que você disse, mas juro que prefiro qualquer coisa a ter um pai como o que você teve!
Mazzini empalideceu.
- Finalmente! - murmurou ele com os dentes apertados. - Finalmente, sua cobra venenosa, você disse o que queria.
- Sim, cobra venenosa, sim! Mas eu tive pais sadios, está ouvindo? Sadios! Meu pai não morreu em delírio! Eu teria filhos como todo mundo! Então são filhos seus, os quatro seus!
Mazzini enfim explodiu.
- Cobra venenosa tísica! Isso é o que eu disse, o que quero dizer! Pergunte ao médico quem tem a maior culpa pela idiotia de seus filhos: meu pai ou seu pulmão furado e seu pai louco, cobra venenosa!
Prosseguiram cada vez com mais violência, até que um gemido de Isabel fechou instantaneamente suas bocas. À uma da manhã a ligeira indigestõ desaparecera, e como se passa fatalmente com todos os casais jovens que se amaram
intensamente pelo menos uma vez na vida, chegou a reconciliação, tanto mais efusiva como eram penetrantes as ofensas. Amanheceu um dia esplêndido e, ao se levantar, Berta cuspiu sangue. As emoções e a noite desconfortável tinham, sem dúvida, grande culpa. Mazzini a reteve abraçada longo momento, e ala chorou com desespero, mas sem que qualquer dos dois se atrevesse a dizer uma palavra. Às dez decidiram sair, depois do almoço. Como o tempo era
escasso, mandaram a criada matar uma galinha. Enquanto degolava, na cozinha, o animal, dessangrando-o com vagar (Berta aprendera com a mãe esta boa maneira de conservar o viço da carne), a criada acreditou sentir algo como respiração por trás. Voltou-se e viu a menina Isabel, olhando entre assombrada e curiosa a operação... Aquele vermelho a atraía... Vermelho... vermelho...
- Senhora! Sua filha está aqui na cozinha.
Berta chegou; não queria que a garota presenciasse esse tipo de coisa, queria protegê-la o quanto fosse possível das coisas feias da vida.

- Queridinha, vamos sair daqui, a mamãe vai te ensinar uma brincadeira bem divertida.
Mas ela, mimada, birrenta, de um gênio terrível, não arredava pé dali. Foi preciso que a mãe a puxasse pelo braço, o mais suavemente que pôde, e por fim quase a arrastasse, sob muitos gritos estridentes e choramingos da garota cheia de vontades. Depois do almoço, após descansarem um pouco, Mazzini, Berta e a filha caçula saíram. Os quatro meninos voltaram para o seu muro habitual. A criada, terminadas as suas lides, recolheu-se a seu quarto. O casal e a menina passearam pelo bairro, vez por outra saudando amigos, foram até a praça principal, que se encontrava lindamente florida de azaléias carmim, deixou que a menina brincasse um pouco no parquinho, depois se dirigiram
aos arredores da cidade, onde havia uma vegetação exuberante, salpicada aqui e ali de flores de várias espécies e cores, e belas casas de recreio de amigos, aos quais cumprimentavam gentilmente, e por fim aceitaram o convite para tomar um drink com um casal mais íntimo. Quando o Sol se pôs, voltaram, mas Berta ainda quis saudar por um momento as vizinhas da frente. A filha fugiu logo para casa. Os garotos não se moveram a tarde inteira de seu banco. O Sol já transpusera o muro e começava a submergir, e eles continuavam olhando os tijolos, como se algo de muito interessante houvesse ali. Mas logo algo se interpôs entre seus olhares e o muro. A irmã, cansada de cinco horas em companhia dos pais, queria observar por conta própria. Parada ao pé do muro, olhava pensativamente para o ponto
elevado. Queria subir, sem dúvida. Por fim se decidiu por uma cadeira velha, mas ainda faltava subir mais. Recorreu então a uma lata de querosene, e sua grande inteligência e instinto topográfico a fizeram colocá-la em sentido vertical ao muro, com o que triunfou. Isabel conseguira com paciência calculada controlar o equilíbrio e, na ponta dos pés, apoiara a garganta no alto do muro, entre as mãos retesadas. Olhara para os lados e buscara apoio com o pé para subir mais. Queria saber e entender o que os quatro olhavam com tanto interesse, e mais que isso, queria tocá-los,
olhar para eles, o que seus pais nunca permitiam, para matar uma curiosidade meio mórbida. Não desviava os olhos dos irmãos, observava-os com interesse, uma luz insistente fixa em suas pupilas, enquanto uma ideia, acompanhada de uma sensação de excitação crescente, lhe tomava o espírito e mudava a expressão de seu rosto, tornando-o enigmático e com um ligeiro e estranho sorriso. Muito próximos dela, oito olhinhos desamparados fitavam fixamente não se sabe o quê, quatro corpinhos totalmente distraídos e frágeis se estendiam ao longo de um muro. Mas de repente, foram bruscamente interrompidos em seu único prazer na vida.
- Solte-me! Deixe-me! - murmurou um dos quatro, tentando segurar-se com mais força ao muro. - Mamãe! Ai, mamãe! Mamãe, papai! Mamãe, ai! Ma... - choraram todos baixinho, amedrontados e sentidos, e depois gemeram mais alto e de forma lancinante, mas isto foi muito rápido.
E então não puderam mais falar nem emitir nenhum som.

Mazzini, na casa defronte, acreditou ouvir vozinhas de crianças. 

- Parece que chamam por você - disse Berta.
Apuraram o ouvido, inquietos, mas nada mais ouviram. Um momento depois, contudo, despediram-se e, enquanto Berta ia pendurar o chapéu, Mazzini avançou pelo pátio.
- Crianças!
Ninguém respondeu.
- FILHOS! - elevou a voz, já alterado.
O silêncio foi tão fúnebre para seu coração sempre aterrorizado que as costas se gelaram por um horrível pressentimento.
- Meus filhos, meus filhos! - correu já desesperado aos fundos. Mas ao passar diante do muro, viu no chão um mar de sangue e uma massa disforme de carne, vísceras e mais sangue. Lançou um grito do mais profundo horror. Berta, que já corria por sua vez ao ouvir o angustiante chamado do marido, ouviu o grito e respondeu com outro. Mas, ao se precipitar em direção ao muro, Mazzini, lívido como papel, interpôs-se, contendo-a:
- Não olhe! Não olhe!
Mas ela empurrou o marido, avançou e viu tudo: o chão inundado de sangue, quatro corpinhos transformados numa massa única, macabra e indizivelmente horripilante. Logo mais, à direita, a pequena e linda Isabel, tendo à mão, todo ensanguentado, o facão de cozinha que houvera dessangrado a galinha, um ar angelical, sorridente e psicopático que a enregelou de pavor e a destruiu em profunda decepção. Berta levantou os braços à cabeça e sentiu-se desmoronar com um gemido profundamente lamentoso e lancinante.

 

Mulher cavalo


O CAVALO E A LUA

Em setembro, no planalto seco de argilas azuis, que se desviava, desmoronadiço, sobre o mar africano, o campo, que já ardia pelo furor dos raios solares de verão, era triste. Ainda tinha alguns arbustos ressecados, com raras amendoeiras e algum tronco centenário de oliveira aqui e ali. Mas ficou combinado que os noivos passariam pelo menos os primeiros dias da lua-de-mel lá. Em consideração ao marido. O almoço de núpcias, preparado numa sala da antiga vila solitária, não foi realmente uma festa para os convidados. Nenhum deles conseguiu vencer a perturbação, que era antes desânimo, pelo aspecto e o comportamento daquele homem bronco, gordo, de seus 50 e poucos anos, rosto pouco desenvolvido, que olhava aqui e ali com os pequenos olhos pretos, sem brilho, semelhantes aos de um rato, e quase nada entendia, e não comia, não bebia, e se tornava cada vez mais vermelho. Sabia-se que, tomado por um amor insensato por aquela que agora se sentava ao seu lado, a esposa entrara em desespero, fizera loucuras, até o ponto de tentar se suicidar. Ele, riquíssimo, único herdeiro da antiga família Dousseau, por uma que, tudo
considerado, não passava da filha de um sargento, ordenança de um Coronel de Cavalaria, chegado a Nice um ano antes. O militar, precavido contra os habitantes da ilha, não queria concordar, a princípio, com aquele casamento, para
não deixar ali, entre os selvagens, a filhinha. O desalento pelo aspecto e o comportamento do marido crescia entre os convidados, quanto mais se davam conta do contraste com o ar da novíssima mulher. Era ainda uma verdadeira criança, viva, fresca, forasteira: e parecia varrer de si qualquer pensamento tedioso com certos impulsos de uma vivacidade cheia de graça, ingênua e esperta ao mesmo tempo. Esperta, sim, mas de uma malícia ainda ignara de tudo. Órfã, crescida desde a infância sem a mãe, parecia de fato claro que se casou inteiramente despreparada. Todos, num certo momento, acabada a refeição, sorriram, acharam estouvada, despropositada e sentiram-se constrangidos ante uma reclamação dela, voltada para o marido:

- Meu Deus, Albert, mas por que você aperta tanto os olhos? Deixe-me... não, que coisa quente! Por que suas mãos estão tão quentes? Sinta, sinta, papai, como estão quentes as mãos dele. Estará com febre?
Apreensivo, o pai apressou a saída dos convidados da casa de campo. Para acabar, é claro, com aquele espetáculo que lhe parecia absurdo, desagradável e meio indecente. Todos se puseram em seus lugares nas seis carruagens. A carruagem em que o sargento se sentou ao lado da mãe do noivo (ela também viúva), andando devagar pela alameda, ficou um pouco para trás, porque os noivos, ela daqui, ele dali, quiseram segui-la por um trecho a pé, até o entroncamento da estrada que conduzia à cidade longínqua. O sargento, então, inclinou-se para beijar a cabeça da filha. Tossiu e murmurou:
- Adeus, Albert.

- Adeus, Constance - sorriu a mãe do noivo. E a carruagem, num trote rápido, tratou de alcançar as outras. Os noivos permaneceram um momento acompanhando-a com os olhos. Constance é quem, na verdade, acompanhava-a, porque Albert não via nada, não ouvia nada, os olhos fixos na mulher que permanecia ali, sozinha com ele finalmente, toda sua, toda. Mas o quê? Chorava?
- Oh, papai - disse Constance, agitando o lenço, para saudá-lo. - Ali, está vendo?
Também ele...
- Mas você não, Constance... Minha Constance... - balbuciou, quase soluçañdo, Albert, tentando abraçá-la, todo trêmulo. Constance o empurrou.
- Deixe-me, por favor.
- Quero secar seus olhos...
- Não, querido, obrigada. Seco sozinha.
Albert ficou ali, entorpecido, olhando-a, com cara de coitado, boca meio aberta. Constance acabou de secar os olhos e perguntou depois:
- Mas o que você tem? Está tremendo todo. Por Deus, Albert, não, não fique na minha frente assim! Me faz rir. E se começo a rir não paro mais. Espere, vou acordar você.
Pousou-lhe levemente as mãos na testa e soprou nos olhos. Ao toque daqueles dedos, à percepção daquele hálito, ele sentiu as pernas se afrouxarem. Quase caiu de joelhos, mas ela o segurou, explodindo num riso estrondoso.
- Aqui na estrada? Você está louco? Vamos, vamos! Olhe ali: naquela colina! Veremos ainda as carruagens. Vamos ver?

E o puxou por um braço, com ímpeto. Do campo ao redor, onde toda a vegetação rarefeita já haviam secado, emanava no calor do verão quase um hálito antigo, denso, que se misturava à tepidez gordurosa do esterco, fermentando em pequenos montes na terra improdutiva, e com a fragrância forte das hortelãs ainda vivas e das
sálvias. Só ele percebia aquele cheiro intenso, aquela tepidez gordurosa, as fragrâncias penetrantes. Constance, por sua vez, por trás das espessas sebes dos figos-da-Índia, entre os tufos ressequidos pelo Sol dos arbustos, ouvia, correndo, como cantavam as cotovias alegres ao Sol, e como, no mormaço da planície, no silêncio atordoado, soava, de lugares longínquos, o cacarejar de algum galo. Sentiu chegar, em alguns momentos, a brisa refrescante que vinha
do mar perto, e mexia as folhas cansadas das amendoeiras, já raras e quase morrendo, e também as amarronzadas oliveiras. Chegaram logo à colina, mas ele não se aguentava mais, quase estalara em pedaços, por causa da corrida. Quis se sentar. Tentou fazê-la se sentar também, ao lado, puxando-a pela cintura. Mas Constance escapou-lhe. 
- Deixe-me olhar, antes.
Dentro de si começava a ficar inquieta. Não queria demonstrar. Irritada com certas curiosas teimosias dele, não sabia, não queria ficar parada; queria fugir ainda, afastar-se, sacudi-lo, distraí-lo e também se distrair, enquanto ainda era dia. Da colina se estendia uma planície interminável, num mar de arbustos, no qual serpenteavam aqui e ali os negros vestígios das queimadas, e por algumas partes também se rompia o amarelo pesado de alguma alcaparra ou algum alcaçuz. Bem mais adiante, quase do outro lado daquele vasto mar amarelo, avistavam-se os tetos de um lugarejo
entre os altos álamos negros. Constance, então, propôs ao marido chegar até lá. Levariam quanto tempo? Uma hora, talvez um pouco mais. Eram apenas cinco horas. Antes de anoitecer estariam de retorno. Albert tentou se opor, mas ela o puxou pelas mãos, obrigou-o a ficar de pé, e depois correu pela breve ladeira daquela colina, pelo mar de arbustos, ágil e rápida como uma gazela. Ele, não podendo acompanhá-la, ficava cada vez mais vermelho, e, atordoado, suado, ofegava, correndo, e a chamava, pedindo-lhe a mão:
- Pelo menos a mão! - gritava, enquanto caminhava.
De repente ele parou, soltando um grito. Levantou-se, à frente, um bando de corvos, crocitando. Logo ali, estendido no chão, havia um cavalo morto. Mas... não, não estava morto: tinha os olhos abertos. Deus, que olhos! Era quase um esqueleto. E aquelas costelas! Aqueles flancos!

Albert chegou, bufando, aflito:
- Vamos embora logo! Voltemos.
- Está vivo, olhe! - gritou Constance, com horror e piedade. - Levanta a cabeça...
Deus, que olhos! Olhe, Albert!
- Pois então - fez ele, ainda arfando. - Vieram jogá-lo aqui. Deixe; vamos embora! Que coisa. Você não sente o ar já...
- E aqueles corvos? - exclamou ela com um calafrio de horror. - Aqueles corvos vão devorá-lo vivo?
- Mas Constance, por caridade! - implorou ele com as mãos juntas.
- Albert, chega! - ela ainda gritou, no ápice da raiva e repulsa por vê-lo assim tão suplicante e tolo. - Responda: vão devorá-lo vivo?
- Ora, sei lá... como posso saber? Esperarão, talvez...
- Que morra aqui, de fome, de sede? - retornou ela, com o rosto comprimido pela compaixão e pelo horror. - Porque é velho? Porque não serve mais? Ah, pobre animal! Que infâmia! Que coração têm estes vilões? Que coração tem você aqui?
- Desculpe - disse ele, alterado -, mas você sente tanta piedade por um animal...
- Não deveria sentir?
- Mas não sente por mim!
- E que animal você é? Está morrendo de fome e de sede? Escute... oh, olhe os corvos, Albert, em cima... olhe... Voam em círculos. Oh, que coisa horrível, infame, monstruosa. Olha... oh, pobre animal... tenta se levantar! Albert, move-se... talvez ainda possa caminhar... vamos ajudá-lo... Mexa-se!
- Mas o que você quer que eu faça? - enfureceu-se ele, exasperado. - Posso arrastá-lo? Carregá-lo nas costas? Era só o que me faltava! Como quer que ele caminhe? Não vê que está meio morto?
- E se providenciássemos comida?
- E bebida, também, suponho...
- Como você é mau, Albert! - disse Constance com lágrimas nos olhos.

Inclinou-se para roçar com a mão a cabeça do cavalo, que se levantara com dificuldade do chão, ajoelhando-se sobre as duas patas dianteiras, para mostrar, no abatimento de sua miséria, um último resto, no pescoço e na cabeça, da sua nobre beleza. Albert, pelo sangue embaralhado ou pelo despeito obstinado, ou talvez pela corrida e o suor, sentiu um calafrio, sobressaltou-se e seus dentes começaram a bater, com um tremor estranho de todo o corpo. Levantou instintivamente a gola do casaco e, com as mãos no bolso, sombrio, encolhido, desesperado, foi se sentar afastado, numa pedra. O Sol já se pusera. Soaram, ao longe, os guizos de alguma carroça que passava na estrada, embaixo. Por que ele batia os dentes assim? A testa queimava, o sangue fervia nas veias e os ouvidos zumbiam. Parecia-lhe também que sinos tocavam ao longe. Toda aquela ânsia, todo aquele sofrimento da espera, a frieza caprichosa dela, a última corrida, e agora o cavalo, o maldito cavalo... Oh Deus, era um sonho? Um pesadelo? Era a febre? Talvez uma doença pior. Sim! Que escuro, Deus, que escuro! Ou eram os olhos que também se turvavam? E não podia falar, não podia gritar. Chamava-a: - Constance, Constance! -, mas a voz não saía da garganta seca e quase sufocada. Onde estava Constance? O que fazia? Correra ao lugarejo para pedir ajuda para aquele cavalo, sem pensar que foram as
próprias pessoas dali que arrastaram o animal moribundo. E ali ele permaneceu, sozinho, sentado na pedra, tomado pelo tremor crescente. Curvado, mantendo-se encolhido, como uma grande coruja empoleirada, entreviu de repente uma coisa que lhe pareceu... mas sim, justamente, embora atroz, uma visão do outro mundo. A Lua! Uma grande Lua que surgia lentamente daquele mar amarelo de arbustos. E, negra, naquele enorme disco de cobre vaporoso, a cabeça do cavalo esperava, ainda com o pescoço inclinado para a frente, e teria esperado para sempre, talvez, negro, recortado sobre aquele disco de cobre, enquanto os corvos, voando em círculos, crocitavam alto no céu. Quando

Constance, desiludida, indignada, perdida pela planície, gritando - Albert! Albert! -, voltou. A Lua já estava alta; o cavalo se prostrara, como morto; e Albert... - onde estava Albert? Oh, ali está ele, também deitado no chão. Adormecera? Correu para ele. Encontrou-o agonizando, com o rosto também no chão, quase preto, olhos inchados, fechados, congestionado.
- Oh, Deus!
Ela olhou em torno, quase desmaiada. Abriu as mãos, em que segurava algumas favas secas trazidas do lugarejo para dar de comer ao cavalo; olhou a Lua, depois o cavalo morto, depois no chão o homem que agonizava. Sentiu-se desfalecer, assaltada de repente pelo horror, pela dúvida se tudo aquilo que via era ou não verdadeiro; e fugiu, aterrorizada, em direção à vila, chamando em voz alta pelo pai, para levá-la embora. Oh, Deus! Para longe daquele homem que se retorcia... quem sabe por quê! Longe daquele animal cruelmente morto, longe daquela Lua louca e sinistra, longe daqueles corvos lúgubres que crocitavam no céu... longe, longe, longe. Mas então Albert, com o fio de força que ainda lhe restava, agarrou-a pelos pés, derrubando-a.
- Daqui você não sai - disse, em um fio de voz rouca e sinistra. 
- Largue-me! Largue-me! - gritou, em desespero.
- Eu morro, mas você vai junto - falou ele, com voz mortiça e maligna, mostrando todo o negror de seu espírito.   
- Pelo amor de Deus, Albert! - implorou, gelada de pavor. O homem estava enlouquecido, possesso. Ela tentava fugir, mas quanto mais tentava, com mais força ele a agarrava. Foi então que ele cerrou as duas mãos no pescoço de Constance e começou a apertá-lo. Ela tentou gritar, mas só saiu um som abafado de sua garganta.
- Desista de fugir, chegou a sua hora, você vai para o inferno comigo... - e deu uma risada sádica, assustadora.  
Ela agora tossia, sem ar.

Mas eis que então, surpreendentemente, avistaram um vulto luminoso que se aproximava rápido, flutuante, tornando todo aquele ambiente árido muito mais belo, colorido e viçoso. Ficaram ambos boquiabertos, espantados, e Albert até afrouxou a força de suas mãos sobre o pescoço de Constance. Então ouviu-se uma voz profundamente serena, de uma belissima estranheza, em tom decidido, que transmitia confiança e não admitia negativa:
- Não tenha medo, minha boa e doce Constance. Suba...
E o vulto, agora um pouco mais palpável e sólido, pôs-se numa posição em que ela pôde facilmente sentar-se com segurança sobre ele. Aquela forma indefinida e enevoada foi ficando mais nítida, tomando forma. Espantosamente, misteriosamente, e para imensa alegria da jovem, perceberam que era o cavalo - agora totalmente são, encorpado, vigoroso e absolutamente lindo. E o animal partiu, num galope muito rápido, mas leve como pluma, levando na garupa Constance.

 

 

Crianças fantasma

 

O ESPÍRITO DO QUARTO 805 E AS CRIANÇAS-FANTASMA

O hospital nem sempre é um lugar triste, mas guando se trabalha durante 30 anos, convivendo com doenças, sofrimento, mortes, perda de pessoas queridas, acaba-se contaminando, por menos que seja, com essa atmosfera negativa e sombria. O Hospital Saint-Étienne, em Grenoble, sempre foi a minha casa. Comecei a trabalhar lá como enfermeiro, um ano e pouco depois passei a Chefe do Plantão Noturno no oitavo andar. Minha vida acabou totalmente dedicada a esse ofício, a esse setor; não me casei, não tive filhos e minha família eram os colegas e pacientes. O dono do hospital, o saudoso Dr. Antoine Dupont, era muito humano, espiritualizado, dedicado ao hospital, ao trabalho e aos pacientes. O oitavo andar, que era de sua responsabilidade, acabou sendo um local de boas ações, de caridade; pacientes que não tinham para onde ir, doentes crônicos, os solitários, os tristes, os depressivos, etc., ficavam aos cuidados do Dr. Dupont. Um deles, Louis Geraldy, andarilho que fora atropelado e ficou paralítico. Com um quadro crônico de osteomielite no quadril, e sem ter para onde ir, foi ficando no hospital, até que por fim, já com alguma idade, acabou morrendo. Cansei de fazer seus curativos, conversar longa e amigavelmente com ele e tentar confortá-lo, acabamos ficando muito próximos. Nunca vi alguém sofrer durante um período tão longo como ele, mas ainda
assim mantia uma grande vitalidade de espírito, era um homem forte, que nunca se queixava de nada, nunca demonstrava fraqueza.

O hospital, diante do novo cenário francês com relação aos planos de saúde e com o aumento da concorrência, terminou por sair das mãos da família Dupont. Foi comprado por uma operadora de planos de saúde e uma faculdade de Medicina. O oitavo andar foi dividido em duas partes: de um lado ficavam os alojamentos dos residentes; do outro, a pediatria, com os quartos 801 a 805, onde ainda devo trabalhar por seis meses. Sinto-me em casa nesse setor, pois gosto muito de de crianças. Como sempre acontece em qualquer ambiente de trabalho, os funcionários se relacionam, conversam, fazem comentários de todo tipo, espalham boatos. Um deles, sobre Louis Geraldy, começou depois depois de sua morte, e dava conta de que ele teria sido um assassino de crianças na Bélgica e depois fugira para a França, longe do alcance da polícia. Não se sabe se é folclore, mas, durante um bom tempo ele fora perseguido por espíritos malignos e por outros de crianças mortas por ele, vivia completamente aterrorizado e antes de morrer queria um padre para confessar seus pecados. Alguns diziam que Louis ainda estava no quarto 805, assombrado pelos mesmos espíritos malignos e por crianças queimadas, deformadas, de corpos multilados - centenas delas. Não sou supersticioso nem influenciável, continuava tendo uma ótima imagem de meu amigo, mas mesmo assim sentia um pouco de medo e, pelo sim e pelo não, depois de ouvir essas histórias nunca mais entrei no quarto 805.

Não sou um futriqueiro, mas também acabei contando essa história a uma ou outra pessoa, e para meu azar uma delas era repórter do principal jornal de Grenoble e publicou o caso como verdadeiro, o que deixou a Drª Adéle, Diretora do hospital, muito aborrecida. Resolvi então dirigir-me a ela para conversar sobre esse e outros assuntos, pois estava em dúvida se ela sabia ou não que fora eu a passar a informação, e sobretudo preocupado com meu futuro no hospital. Ela deu-me a ligeira impressão de desprezo por mim, cheguei a supor que relutava em me receber. Mas logo tirei essa ideia da cabeça, pois percebi que ela estava muito ocupada, devido à quantidade de papéis em sua mesa e ao telefone que não parava de tocar.
- Sr. Edouard, como pode ver, estou muito ocupada – disse, sem me chamar de enfermeiro. Conjecturei então, mais uma vez, que ela não me considerava como profissional, já era carta fora do baralho. Tudo havia se modernizado, a maioria das enfermeiras dos hospitais eram mulheres jovens como ela (tinha 34 anos), talvez eu fosse um dinossauro, um elefante branco, que mais atrapalhava que ajudava, e deveria ser excluído. Mas, como faltavam apenas seis meses para eu me aposentar, depois de um pedido formal do próprio Marcel Dupont, filho do Dr. Antoine, ela me manteria até minha aposentadoria.
- Gostaria de falar sobre o 805 - eu disse.
- Já falei para todos esquecerem essas histórias sobre o quarto 805, sobre Louis Geraldy; isso está prejudicando o hospital, inclusive saiu uma matéria no jornal a respeito.
Ela pegou o jornal e o mostrou para mim.
– Quem vazou essa informação deveria ser demitido.
(Pensei, com alívio, que ela nao sabia que fora eu.)
- Não fui eu – menti, com medo de ser posto na rua.
Ela disse, encerrando a conversa:
- Tanto melhor. Agora pode se retirar.

Desde muito eu fui um tanto depressivo, porém nos últimos meses que antecediam minha aposentadoria estava sobremaneira melancólico, só queria me isolar, ficar sozinho com meus pensamentos e sentimentos. A angústia e a ansiedade estavam me matando; além de ficar sem ocupação, não tinha para onde ir, nem nada me despertava vontade alguma. Sempre vivi ali, minha vida era naquele hospital. O trabalho, o movimento, os colegas, os pacientes, as pessoas que entravam doentes e saíam boas, os que sofriam... o prazer de ajudar, ser útil, ter uma profissão importante, de receber a amizade e gratidão de tantos... eu amava tudo isso, era o sentido da minha vida. Agora tinha que me mudar, mas para onde? Para fazer o quê? Por piedade, me deixaram no oitavo andar, na pediatria, porque era o único lugar onde eu não atrapalhava. O que me confortava um pouco era o fato de eu me dar bem com a maioria do pessoal, ter alguns camaradas, além de ter feito duas boas amigas, as enfermeiras Alinne e Hélene, que poderia encontrar depois de deixar o hospital. Certo dia, eu fui designado para ajudar o setor como enfermeiro, pois um dos enfermeiros estava de licença. Fiquei muito incomodado, pois nessa função eu deveria visitar os quartos,
incluindo o 805, no qual havia decidido nunca mais entrar. Mas refleti uns segundos sobre o assunto e concluuí que esse temor era uma bobagem, eu estava me deixando influenciar e amedrontar por superstições. Na minha primeira visita ao quarto 805, entrei meio ansioso, sem conseguir evitar algum medo, para verificar a pressão da Srª Mariette. Ela me olhou e disse, grosseira e autoritária:
– Você é o enfermeiro que falou as bobagens à repórter? – Ela tirou o aparelho de pressão com força. - O que você está fazendo aqui? Saia do meu quarto! Você é um sem-vergonha. Não sei como não o puseram no olho da rua. Providenciem outro enfermeiro, você eu não quero.
O sangue me subiu à cabeça, fiquei muito tentado a responder àquela mulher tão desagradável, mas deixei pra lá e saí rápido do quarto, aliviado. Alinne estava perto da porta, indignada. Sentei-me numa cadeira no corredor. Eram 15 para duas da manhã. Uma pessoa sentou do meu lado e disse:

- Também sinto isso por essa mulher.
- Isso o quê? – Falei, sem levantar a cabeça.
- Ódio.
Meio distraído Virei e... OH HORROR! Era Louis Geraldy. Duas crianças o acompanhavam, uma de pescoço quebrado e outra com a pele carbonizada, ambas com a fisionomia demonstrando uma dor atroz. Completamente gelado de pavor, tentei correr para longe dali, mas minhas pernas não me obedeciam. Eu suava frio, com o coração disparado, em completo estado de pânico, mas tentei me acalmar, pensando: ora, isso é coisa da minha imaginação, da minha mente impressionada e sugestionada pelas histórias desse pessoal. A luz do 805 estava acesa, e da sua porta ouvi Alphonse, o enfermeiro que ficara em meu lugar, me chamar. Estava parado de braços cruzados, e atrás dele Louis, sorrindo, e as duas crianças. Uma canção estranha, lamentosa, longínqua, que parecia não ser deste mundo, saía da boca delas. O pavor voltou e gelei novamente, mas consegui correr em direção dele, para tentar ajudá-lo, sabe lá Deus como. Ele falou:
- O que foi, Edouard, que cara é essa, parece que você viu um monstro!
Então ouvi a voz de Louis:
- Edouard, você não vê o mal por todo este hospital, em cada canto? Somos prisioneiros, não há como escapar.
E o coro continuava. Comecei a tremer incontrolavelmente. Uma das crianças, a queimada, pegou meu ombro suavemente e disse, penalizada de mim:
– Não fique assim, moço. Não adianta ter medo. Nós já choramos muito de medo, mas não adianta nada.
Olhei para Louis e disse:
- O que você quer de mim?
- Quero que você se prepare, que não se iluda: o mal vai te alcançar também. Este hospital está amaldiçoado e não há limites para o número de vítimas que aqui padecem e padecerão, não há fim para esse mal, não há como não ser contaminado por ele. Veja, eu sofri horrivelmente, purguei todos os meus pecados, me arrependi de meus atos do

passado, pensei que tivesse recebido o perdão de Deus por eles... mas não... Não consigo libertar minha alma, não consigo ter paz, não consigo deixar de ficar vagando perdido e infeliz pelos cantos deste edifício. Parece que o mal que eu fiz me condenou para sempre, que ficou impregnado em meu espírito, em todo o meu ser. Mas eu vou te ajudar a não sofrer como eu, a não se sentir solitário e perdido, vou libertar sua alma, vou cumprir a minha sina.
- O que quer dizer com isso? - perguntei, com voz vacilante.
- Edouard, pense melhor... você sabe...
- Não sei de nada, muito menos imagino como você possa me ajudar.
- Edouard, eu disse que vou libertar sua alma. Vou livrá-lo do peso de sua existência miserável. Vou livrá-lo, Edouard, de seu corpo velho e inútil.
Eu congelei, fiquei literalmente paralisado de medo. Então pensei ter ouvido passos infantis e olhei para o lado, em direção à ala de pediatria. De fato, havia agora três crianças me observando.
- É isso, Edouard. Você entendeu? Eu quero te ajudar - e mesmo, não posso evitar, eu PRECISO fazer... – disse Louis Geraldy. As três crianças começaram a se aproximar, apareceram mais umas dez delas... e logo eram muitas, pelo menos umas 50. Seu coro agora ficava mais alto, porém aquelas vozes infantis eram belas, doces, harmoniosas. Pareciam entoar uma espécie de conjuro ou oração em forma de uma canção sublime, angelical, estranha e diferente de tudo que se conhece, e trasmitiam algo de muito bom e pacífico. Então elas foram se dando as mãos, formando um círculo, postaram-se em volta de Louis e começaram a rodar, como numa ciranda. Eu continuava com medo, mas senti-me acalmar um pouco. Não entendia nada do que estava acontecendo e estava em grande expectativa. Louis falou alto, quase gritando:

- Saiam daqui! Saiam todas! Há algo que preciso concluir... Vão embora, me deixem...
Elas giravam e giravam, ainda entoando o conjuro. Era algo belo de se ver e ouvir, estranhamente comovedor - puro, inocente, misterioso, celestial, parecia de outra esfera deste mundo. Louis ainda pedia insistentemente que o deixassem. As crianças então fecharam um pouco o círculo em torno dele. Agora suas vozinhas como que lhe falavam e acariciavam mansamente por meio de uma canção. Era uma cena totalmente inusitada, indescritível, que me deixava cada vez mais expectante, entre ansioso e apaziguado. E Louis:
- Por favor, saiam... - sua voz agora estava mais baixa e não tinha mais a convicção de antes. E as crianças continuavam, pacientes. Pareciam seguras do que faziam. Então, surpreendentemente, Louis, aquele homem sempre forte e durão, amoleceu, caiu sobre os próprios joelhos, em um pranto discreto, mas sentido. As crianças puseram suavemente as mãozinhas em sua cabeça e disseram, com a vozinha baixa, a mais meiga, penalizada e tocante deste mundo:
- Não chore, Louis, Você não tem culpa. Tudo vai ficar bem - e continuaram a ciranda, bonita e misteriosa, agora com alegria - uma alegria discreta, mansa, silenciosa. Louis agora soluçava, lembrando toda sua vida de sofrimento, sentindo também remorso pelos seus maus atos e comoção pela bondade e meiguice daquelas crianças. Começou a sentir-se finalmente perdoado e um pouco de paz começava a invadir seu espírito. As crianças continuavam a girar, agora mais devagar. E, milagrosamente, de repente todos os ferimentos e chagas de seus corpinhos
começaram a desaparecer, até que sumiram totalmente, e elas agora tinham uma espécie de luz a envolvê-las, uma luz transparente, cintilante, em cores suaves, meio furta-cor, mais ou menos como o interior de uma concha do mar. Eu estava maravilhado, minha ansiedade sumia aos poucos, substituída por uma sensação de tranquilidade e encantamento inexplicável.

Aquilo tudo era muito bonito, inusitado, fantástico. E inacreditável. De modo que, junto ao encantamento, havia também um pouco de medo pelo totalmente desconhecido. Louis agora estava em silêncio, em paz e quietude de alma, totalmente entregue, emocionado e cheio de uma mansa felicidade, profundamente grato às crianças. Milhares de pensamentos e sentimentos bons lhe invadiam, tantos que ele não conseguia falar nada. Mas as crianças sentiam e recebiam as suas emanações de amor e gratidão, a beleza de seu espírito. E eis que então, numa cena bonita, estranha e impressionante, abriu-se como que uma nesga intensamente luminosa e cheia de cores muito suaves em uma das paredes, e todos eles foram se dirigindo a ela devagar, como se atraídos e convidados por algo de muito acolhedor e bondoso. E assim, um a um se foram, até que a nesga se fechou e tudo voltou ao normal. Na minha alma, um grande alívio, a certeza íntima de que tudo de mal havia terminado. Sentia paz, um sentimento de plenitude e alegria. Minha mente agora estava lúcida, eu sentia abrirem-se para mim novas perspectivas, novas vontades e planos, Eu ainda estava vivo, afinal, e com muitas e muitas possibilidades. Sabia que seria feliz novamente.

 

 

Porta-jóias / caixinha de música

 

O PORTA-JÓIAS / CAIXINHA DE MÚSICA

Phillip estava deitado de costas numa cama de casal no quarto de sua mansão em New Hampton, Inglaterra. Estava nu, molhado, pronto para entrar no banho, mas se sentia sem ânimo, fatigado. Pensamentos sombrios lhe passavam pela cabeça: o abandono da esposa Susan, a doença e morte da filha Catherine, de quatro anos, a tristeza profunda, a solidão, o desalento e a destruição gradativa. Depois da perda da filha, passou a beber absinto várias vezes ao dia, era a única forma de se manter em pé, continuar trabalhando, vivendo pelo menos um arremedo de vida - era a sua pouca alegria, ainda que artificial e entremeada de momentos de profunda depressão, e e ele sabia dos danos físicos e mentais que estava se causando. Por ser muito orgulhoso, além de estar desesperançado, sem vontade de viver, nunca procurou ajuda médica, mesmo sabendo que estava se auto-consumindo dia a dia. E pensando nessas coisas, acabou adormecendo. Acordou a umas sete e meia da manhã, sentindo a cabeça pesada e muito dolorida. Decidiu não trabalhar nesse dia e ficou descansando até melhorar um pouco. Logo sua mente começou a vagar de novo. Lembrou-se dos dias em que a filha reclamava de cansaço, náuseas e dores de cabeça, de quando a levou a vários médicos, sem que nenhum conseguisse diagnosticar nada, até o dia em que recebeu de um deles a sentença cruel: Catherine sofria de uma doença rara, incurável e fatal que lhe deteriorava as veias progressivamente e não lhe permitiria viver muito, no máximo até os 15 anos, com muito otimismo - mas o mais provável era que lhe faltava bem pouco tempo de vida. Phillip ouviu tudo arrasado, mal conseguia acreditar que aquilo fosse real, era uma realidade dura de assimilar, parecia um sonho muito ruim do qual logo acordaria. No entanto, teve que encarar os fatos, e não

se conformou com o diagnóstico, procurou muitos outros médicos, inclusive em outros países, gastou toda a sua fortuna, o dinheiro que tinha e o que não tinha, buscou todo tipo de tratamento, mesmo os alternativos, os mais exóticos. Nessa época, a esposa, não aguentando a pressão e o clima pesado na casa, os abandonou, deixando um bilhete de despedida frio e com muito poucas palavras. E não voltou mais. Susan era uma mulher frívola, superficial, ambiciosa, insensível, que nunca quis ter filhos, e somente o fez por insistência do marido rico que sustentava sua vida de luxo. A pequena Kate morreu poucos meses depois que a mãe se foi. A partir daí, Phillip começou a afundar ainda mais; além do absinto começou também a usar drogas, começou a viver uma vida de dissipação, andava com muitas mulheres, inclusive prostitutas, passou a não querer mais trabalhar, sua empresa, como sua vida, estava indo para o buraco, até que terminou por falir. Vivia agora com muito pouco dinheiro, mas pouco se importava com isso, começou a fazer cada vez mais dívidas as quais não teria como saldar. Mas pouco se importava com isso, e não tinha motivação para se reerguer. "Vou terminar de gastar o resto..." - pensou ele, em transe devido ao sofrimento, ao absinto e as drogas. Chegando em casa depois de uma noitada, Phillip se jogou no sofá, nem se preocupou em ir para o quarto, colocar um pijama, pelo menos, e desmaiou de sono. Estava um verdadeiro trapo humano, um patético arremedo do homem que antes fora. Minutos depois, acordou com o som da música suave e melodiosa do porta-jóias/caixinha de música que pertencera à sua filha, presenteado por ele no seu aniversário de dois aninhos.

Catherine amava essa pequena e delicada relíquia em madrepérola, ouro, pérolas e porcelana esmaltada, com uma bailarininha que dançava ao abrir-se a tampa, principalmente por tê-la ganho de seu paizinho amado. Era seu brinquedo predileto entre todos os muitos que tinha, vivia brincando com a caixinha. Philip se emocionou até as lágrimas, mas em seguida ficou aborrecido e falou para si mesmo: - Aquela empregada idiota, de novo desobececeu minhas ordens e tocou no quarto de Kate! - levantou do sofá e andou em direção ao quartinho. Por alguns instantes ficou parado; como sempre, faltava-lhe coragem para entrar: ali permanecia tudo exatamente como ela houvera deixado, nem mesmo a roupa suja tinha sido tocada. Ali tudo esta impregnado da sua presença, ali estava tudo que ela amava, tudo que era a sua carinha, até mesmo seu cheirinho gostoso e suave ainda podia sentir. Segurando um porta-retrato com uma fotinha da filha, mais uma vez começou a chorar copiosamente, sentia uma dor e uma saudade profundas, impossíveis de tolerar. Pensou vagamente que desta vez iria tomar alguma providência quanto à empregada desobediente. Deitou-se na pequena caminha, abraçado ao porta-retratos, e acabou adormecendo. Como acontecia vezes seguidas, sonhou com Kate. Eram sempre sonhos doces, felizes, e tão realistas que quando acordava ele se decepcionava muito por voltar à amarga realidade, sentia aumentar ainda mais, se possível fosse, a dor pela falta da garotinha. Nesse sonho, como outras vezes, ela falava com ele... dizia: - Papai, não chore, por favor, fique alegre, eu estou aqui, eu nunca vou te deixar, nós ficaremos sempre juntos - ESTAMOS sempre juntos.

Ao fundo, a linda e tocante musiquinha do porta-jóias, que cintilava ainda mais sob a luz do Sol que entrava pela janela. Ele se sentia contente e apaziguado... Mas então, como tantas e tantas vezes, acordou num momento feliz de um sonho e sentiu fortemente a crueza implacável de sua realidade. Só que... desta vez algo estava diferente... junto à dor, ele sentia uma nova e tênue esperança... ainda ouvia a canção, e agora com uma certa alegria, sem a melancolia de sempre. Olhou para a caixinha... e, para sua surpresa, ela realmente estava iluminada pelo Sol, assim como no sonho... Sentiu uma sensação inexplicavelmente boa. E foi então que ouviu uma vozinha, vinda da porta. Olhou... e, para seu grande espanto, lá estava Catherine, exatamente como sempre foi.

- Papai, por favor, não tenha medo...

Ele pensou: - Isto é uma alucinação; é o absinto, as drogas, o sofrimento... tudo isso está me deixando louco. E a menina continuou:

- Meu paizinho, confie em mim, você não está louco. Eu estou mesmo aqui.
Ele ficou confuso, entre amedrontado e contente. E Kate continuou:
- Eu sinto muito... eu sinto tanto... não suporto ver você desse jeito.
Phillip resolveu não lutar mais e deixar-se tomar pela sensação gostosa que o invadia. E disse:
- Minha filhinha querida... quanta saudade... nem consigo explicar como me sinto... esse sentimento maravilhoso nem cabe direito em mim...
- Eu vim te fazer companhia e te ajudar, odeio você sofrendo tanto e destruindo sua vida. E também sinto tanto sua falta... Recebi autorização de meus mentores espirituais para voltar... para te ajudar... para matar a saudade da gente...
- Mas... mas... como? Não entendo. Nunca acreditei nessas coisas de espíritos.
- Papai, não me veja como um espírito, um ser estranho. Eu realmente estou aqui, apenas em outra dimensão. Mas sou eu, Catherine, como sempre fui.
Os olhos de Phillip se encheram de lágrimas. Mas desta vez era de felicidade. Disse:
- Mas... eu gostaria de passar muito tempo ao seu lado...
- Toda vez que precisar de mim, destampe a caixinha de música e deixe a canção tocar... eu farei o mesmo quando sentir sua falta...
A partir desse momento, Phillip sentiu novo ânimo, nova motivação, sua vida tomava novo colorido, largou os vícios, reergueu sua empresa, e tudo na sua vida começou a se transformar, a voltar a ser como era antes.

 

 

 Gato

 

O GATO

Já na minha infância eu era notado pela docilidade e humanidade do meu caráter. Tão nobre era a ternura do meu coração que eu acabava por tornar-me num joguete dos meus companheiros. Tinha uma especial afeição pelos animais, e os meus pais permitiam-me possuir uma grande variedade deles. Com eles passava a maior parte do meu tempo e nunca me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer e os acariciava. Essa faceta do meu caráter acentuou-se com os anos, e, quando homem, aí achava uma das minhas principais fontes de prazer. Casei jovem e tive a felicidade de encontrar uma mulher com uma disposição de espírito semelhante à minha. Vendo o meu gosto por animais domésticos, nunca perdia a oportunidade de me proporcionar alguns exemplares das espécies mais bonitas e agradáveis. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um lindo cão, coelhos, um macaquinho e um gato. Este último era um animal notavelmente forte e belo, de pelagem preta, excepcionalmente inteligente. Jasper, assim se Chamava o gato, era o meu amigo predileto e companheiro de brincadeiras. Só eu lhe dava de comer e ele seguia-me por toda parte, dentro de casa. Era até com dificuldade que conseguia impedir que me seguisse na rua. A nossa amizade durou assim vários anos. Porém, devido ao meu consumo constante de álcool, que me prejudicava física e mentalmente, o meu temperamento e o meu caráter foram sofrendo gradualmente uma grande alteração. Eu me tornava mais taciturno, mais irritável, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Era grosseiro com minha minha mulher, e com o tempo cheguei até a usar de violência com ela. Com os meus animais, não só os desprezava como os tratava mal. Por Jasper, porém, ainda nutria uma certa consideração. Mas a doença tomava conta de mim, e, por fim, até o próprio Jasper, que já envelhecia, o que o deixava um tanto impertinente, começou a sentir os efeitos do

meu caráter alterado. Certa noite, ao chegar em casa de volta de uma taberna, completamente embriagado, percebi que Jasper evitava a minha presença. Apanhei-o bruscamente, e ele, em reação, feriu-me ligeiramente uma mão com as unhas. Uma fúria dos demônios se apossou de mim. Não me reconhecia, estava possesso como nunca. Tirei do bolso do colete um canivete, abri-o, agarrei o animal pelo pescoço e, fora de mim, arranquei-lhe um olho da órbita. Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando se dissiparam os vapores da minha noite de estúrdia, experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo crime que tinha cometido. Mas era um sentimento frágil e equívoco e o meu espírito continuava insensível. Voltei a mergulhar nos excessos, e depressa afoguei no álcool toda a recordação do ato. O gato curou-se lentamente. A órbita agora vazia apresentava um aspecto horrível. Jasper continuava vagueando pela casa como de costume, mas agora fugia aterrorizado quando eu me aproximava. Fiquei um tanto decepcionado com essa antipatia da parte de um animal que antes gostava de mim, mas em breve esse sentimento deu lugar ao alívio: não queria mais contato com o animal. E para minha queda final e irrevogável, o espírito da perversidade tomou-me completamente. Certa manhã, a sangue-frio, passei-lhe um nó corredio ao pescoço e enforquei-o no ramo de uma árvore, sem o menor remorso; ao contrário, com um sádico prazer e mais alívio por não mais ter mais que ver o animal pela frente. Na noite do próprio dia em que este ato cruel foi perpetrado, fui acordado do sono aos gritos de "Fogo!". As cortinas da minha cama estavam em chamas; toda a casa era um braseiro. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A

destruição foi completa. Todos os meus bens materiais foram destruídos, e daí em diante mergulhei no desespero. Nos dias que se sucederam ao incêndio, visitei as ruínas. As paredes tinham sido destruídas por completo - com exceção de uma, constituída por um tabique interior, não muito espesso, que estava ao meio da casa, e de encontro ao qual antes ficava a cabeceira da minha cama. O reboco resistira em grande parte à ação do foga, fato que atribuo a ter sido pouco antes restaurado. Próximo dessa parede juntara-se uma densa multidão e muitas pessoas examinavam espantadas certa parte em particular, e diziam coisas como "- Estranho!"; "- Espantoso!" - e outras expressões semelhantes. Aproximei-me e vi, com assombro e terror, como se fora gravado em baixo revelo, sobre a superfície branca, a figura incrivelmente perfeita de um gato. A imagem estava desenhada com uma precisão realmente espantosa. Em volta do pescoço do animal estava uma corda. Por fim, procurei acalmar-me, tentei desesperadamente justificar para mim mesmo o estranho fenômeno: o gato fora enforcado num jardim junto à casa. Após o alarme de incêndio, o jardim foi invadido por uma multidão, e alguém devia ter cortado a corda que suspendia o gato e o lançado para dentro do meu quarto, por uma janela aberta, provavelmente com a intenção de me acordar. A queda das outras paredes devia ter comprimido a vítima no reboco recentemente aplicado, cuja cal, combinada com as chamas e o amoníaco do cadáver, teriam produzido a imagem tal como se via. Mas a frágil e improvável explicação não acalmava minha imaginação. Durante meses não consegui libertar-me do fantasma de Jasper, e, durante esse período, veio-me ao espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, mas que o não era - tratava-se mais de

medo de ter meu crime descoberto. Cheguei ao ponto de lamentar a perda do animal. Passei a frequentar ainda com mais assiduidade os sórdidos tugúrios onde passava noites de dissipação e bebedeiras. Uma noite, estava eu sentado meio aturdido num desses antros infamantes, quando minha atenção foi despertada por um objeto preto sobre um dos enormes tonéis de gim e de rum do local. Mas estranho, havia minutos que eu olhava para essa direção, mas só agora é que via esse objeto. Aproximei-me e toquei-lhe com a mão. Era um gato preto, um gato enorme, tão grande como Jasper, e semelhante a ele em muitos aspectos. Quando lhe toquei, imediatamente se levantou e ronronou, parecia satisfeito por eu o ter notado. Perguntei ao dono sobre o animal, mas ele nada sabia a seu respeito, nunca o tinha visto até então. Quando eu me preparava para ir para casa, o animal mostrou-se disposto a acompanhar-me. Fiquei muito contrariado, mas permiti que me seguisse, pois a essa altura minha mente já começava a fazer algumas lúgubres associações e conjecturas, e cheguei a fantasiar, amedrontado, poder sofrer algum tipo de retaliação do gato, caso o contrariasse. Quando o bichano chegou à casa, adaptou-se rápido e logo se tornou muito amigo da minha mulher. Comigo ele não chegava a ser antipático, mas se mantinha distante e indiferente. De minha parte, sentia muita aversão ao animal, mas não ousava tratar-lhe mal, pois tinha-lhe um respeito temeroso. Mas sentir crescer cada vez mais em mim sentimentos de desgosto e de aborrecimento que foram se transformando em um ódio violento. Tinha ímpetos de maltratá-lo, de infligir-lhe dor, de eliminá-lo, mas me mantive o mais longe possível dele, não só

para conseguir conter meus ímpetos destrutivos como também porque sua presença me era repulsiva e odiosa. E aumentava ainda mais a minha ira e desgosto ver minha mulher e sua afeição pelo gato e para com todos os demais animais e pessoas, seus sentimentos de humanidade que foram em outros tempos característica minha e a fonte de muitos dos meus prazeres mais simples e mais puros. E no entanto, apesar da indiferença do animal por mim, ele seguia meus passos constantemente, com uma impressionante pertinácia. Embora a minha vontade fosse matá-lo cruelmente, não o fazia, em parte por não querer cometer outro crime, mas, principalmente, devo desde já confessá-lo, por ter desenvolvido um verdadeiro medo do animal. Esse medo não era exatamente o receio de um mal físico, e sim algo indefinido, mas muito forte e persistente, acompanhado de fantasias terríveis e indizíveis. E essa mistura de ódio destrutivo e terror paralisante me provocava sensações indescritíveis que me consumiam insuportavelmente o espírito, eu sentia uma impotência revoltante, uma fúria sem tamanho, um estado de extrema ansiedade, agonia e mal estar - e havia ainda o medo. Um medo que me congelava, que assumia milhares de formas indistintas, sutis, indefiníveis, porém palpáveis e apavorantes. Eu vivia assombrado por coisas reais, oncretas, e também por coisas irreais e fantasmagóricas. O álcool não ajudava nada, ao contrário, tornava tudo ainda mais confuso, pesado e vertiginoso, ajudava, se não fosse o responsável, pelos pensamentos estranhos me perturbavam. Eu já não conseguia distinguir o real do imaginário. A imagem da forca agora me era abominável, lúgubre e assustadora, uma máquina de horror, de crime, de morte. Eu era, na verdade, um miserável maior do que toda a miséria humana, que toda a

miséria que eu causara aos animais, à minha esposa e aos que conviviam comigo. Ah, nem de dia nem de noite, nunca, oh!, nunca mais, conheci a bênção do repouso. Durante o dia o animal não me deixava um só momento. De noite, a cada hora, quando despertava dos meus sonhos cheios de fantasmas e angústia, era para sentir sensações tormentosas, sem contar o bafo quente daquele gato sobre o meu rosto e o seu peso sobre mim, encarnação de um pesadelo a pesar-me eternamente sobre a alma. E no entanto, mesmo sob a pressão de tormentos como estes, ao invés de eu me arrepender, me humanizar, ao contrário, endurecia ainda mais o coração, tornarva-me, se possível, ainda mais perverso, só os pensamentos pecaminosos me eram familiares - os mais sombrios e os mais infames dos
pensamentos. Minha angústia era completamente egoísta, só sofria por mim mesmo, não tinha compaixão alguma, não considerava minimamente o sofrimento que eu causara. E meu ódio acabava se dirigindo preferencialmente à minha dedicada mulher, que era a vítima mais usual e paciente dos meus maus tratos e das minhas frequentes explosões de fúria. Um dia acompanhou-me, por qualquer afazer doméstico, à cave do velho edifício onde a nossa pobreza nos forçava a habitar. O gato odioso seguiu-me nas escadas íngremes, e tão de perto que quase me derrubou, exasperando-me por demais, até que por fim acabei por perder o medo, o auto-controle. Apoderei-me de um machado e desferi um golpe no animal, que seria fatal, se eu não tivesse sido impedido pela mão de minha mulher. Furioso pela sua intromissão, libertei o braço da sua mão e enterrei-lhe o machado no crânio. Caiu morta, ali

mesmo, sem um queixume. Não senti absolutamente nada, nenhum remorso, nenhum medo... até pensei: melhor assim. Mas... que maçada... tinha agora que esconder o corpo. Não o podia retirá-lo de casa, quer de dia quer de noite, sem o risco de ser visto pelos vizinhos. Muitas ideias se atropelaram no meu cérebro. Tive a ideia de cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los pelo fogo. Pensei também em abrir uma cova no chão da cave. Depois pensei em colocá-lo numa caixa, como uma mercadoria, e arranjar um carregador para o tirar de casa. Por fim, decidi-me pelo que considerei a melhor solução: emparedá-lo na cave como, segundo narrativas, faziam os monges da Idade Média às suas vítimas. A cave parecia convir perfeitamente aos meus intentos: as paredes tinham sido recentemente rebocadas com uma argamassa grossa que a umidade ambiente não deixara endurecer. Além disso, numa das paredes havia uma saliência causada por uma chaminé ou por uma lareira que tinha sido entaipada para se assemelhar ao resto da cave. Pensei que seria fácil retirar os tijolos nesse ponto, colocar lá dentro o cadáver e tornar a colocar a taipa como antes, de modo que não restasse ali qualquer sinal suspeito. Com o auxílio de um pé-de-cabra retirei os tijolos, coloquei o corpo de encontro à parede interior e o mantive naquela posição, ao mesmo tempo que, com um certo trabalho, refiz a estrutura interna. Com argamassa, areia e fibras, preparei um reboco com o qual
cobri os tijolos. Vi então, com satisfação, que tudo parecia como antes, não havia nenhum sinal de que a parede tivesse sido mexida. Retirei os resíduos de material e dei por terminada a tarefa. Sentia-me aliviado. A seguir, pus-me

a procurar o animal que fora a razão daquilo tudo, pois que, finalmente, tinha resolvido matá-lo. Mas parecia que o astuto bichano se alarmara com a violência da minha cólera e evitou aparecer-me na frente. Senti ainda mais alívio com a ausência do detestável gato. Passaram-se o segundo e terceiro dias e ele não aparecia. Mais uma vez respirei como um homem livre. O monstro, aterrorizado, tinha abandonado a casa para sempre! Nunca mais voltaria a vê-lo! Não sentia culpa alguma pela minha ação tenebrosa, e o medo que que me inquietava foi sumindo quase que por completo. Fizeram-se alguns interrogatórios que eu respondi satisfatoriamente, nada dando a desconfiar. Os agentes da Polícia tinham ainda que fazer uma busca de praxe, e quiseram que eu os acompanhasse. Nem um músculo me tremeu. Meu coração batia calmamente, como o coração de um homem inocente. Percorremos a cave de ponta a ponta. Eu estava de braços cruzados no peito, andava descontraído e confiante de um lado para o outro. Os agentes ficaram completamente satisfeitos e prontos para partir. Eu me sentia triunfante. - Senhores - disse por fim, quando iam a subir os degraus. - Estou satisfeito por ter dissipado as vossas suspeitas. Desejo muita saúde e uma vida boa a todos vocês. A propósito, perceberam como esta casa está muito bem construída? Estas paredes estão solidamente ligadas. - E bati, com uma bengala que tinha na mão, na parede atrás da qual se encontrava o cadáver da minha esposa.

Ah! Que Deus me livre das garras do arquidemónio! Mal tinha o eco das minhas pancadas mergulhado no silêncio, quando uma voz se fez ouvir de dentro do túmulo: um gemido, a princípio abafado e entrecortado como o choro de urna criança, que depois se transformou num prolongado grito sonoro e contínuo, extremamente anormal e inumano. Um bramido, um uivo, misto de horror e de triunfo, tal como só do inferno poderia vir, provindo das gargantas conjuntas dos condenados na sua agonia e dos demônios no gozo da condenação. Não há como descrever os pensamentos que me vieram. Senti-me desfalecer e encostei-me à parede da frente. Tolhidos pelo terror e pela surpresa, os agentes que subiam a escada detiveram-se por instantes. Logo a seguir, doze braços vigorosos
atacavam a parede, que caiu de um só golpe. O cadáver, com um aspecto horroroso devido ao golpe do machado, coberto de pastas de sangue, apareceu ereto frente a todos. Sobre a cabeça, com as negras e lustrosas faces dilatadas e os olhos chispando como nunca, com uma luminosidade incandescente, impressionante e jamais vista, estava o gato, cuja voz delatora me entregava ao carrasco.

 

 

Água marinha

 

O RASTRO DE EDWARD ASHMORE

A família de William Ashmore era formada por ele, sua mulher Lindsay, sua mãe, Mildred, duas filhas, Martha, de 19 anos, Violet, de 13 e mais o filho Edward, de 16. Moravam em Southampton, Inglaterra, eram pessoas de bom nível, respeitadas, e tinham muitos amigos. Os Ashmores se mudaram para Gloucestershire em 1872, seguindo, um ano depois, para os arredores da cidade, onde o Sr. Ashmore comprou uma fazenda e se instalou. A pouca distância da sede da fazenda havia um lago de água limpa e fresca, que a família usava para suprir suas necessidades durante o ano inteiro. Na noite de 9 de novembro de 1878, lá pelas nove horas, o jovem Edward Ashmore deixou a família reunida em casa e, levando uma pequena jarra, saiu em direção ao lago. Como demorava a voltar, a família ficou inquieta, e o pai, indo até a porta por onde o rapaz saíra, chamou por ele sem obter resposta. Acendeu então uma lanterna e, junto com a filha mais velha, que insistiu em acompanhá-lo, saiu à procura do rapaz. Naquela noite havia caído um pouco de neve, que cobria o caminho mas deixava evidente a trilha feita pelo rapaz. Cada pegada era perfeitamente visível. Quando eles já haviam percorrido pouco mais do que a metade do caminho - cerca de 60 metros -, o pai, que ia na frente, estacou e, erguendo a lanterna, ficou espiando a escuridão à sua frente.
- O que houve, pai? - perguntou Martha. 
O que havia era o seguinte: a trilha do jovem terminava de repente e dali para a frente a neve fofa estava intocada. As últimas pegadas eram tão visíveis quanto as anteriores, sendo possível mesmo distinguir o solado dos sapatos. William Ashmore olhou para cima, usando o chapéu de anteparo para que a luz da lanterna não o ofuscasse. As estrelas brilhavam. Ficou assim afastada a hipótese que chegara a lhe ocorrer de que houvesse caído neve outra vez. Seguindo um caminho maior e rodeando o local onde estavam as últimas pegadas, de forma a deixá-las intocadas

para voltar a examiná-las mais tarde, ele foi até o lago, enquanto a moça seguia atrás, sentindo-se fraca e apavorada. Nenhum dos dois disse uma só palavra sobre o que tinham visto. O lago estava coberto de gelo endurecido. Desesperados, saíram a procurar Edward por toda parte, chamando por seu nome. Nada. Até que desistiram e voltaram para casa, pela mesma trilha que fizera o rapaz, observando a neve de ambos os lados ao longo de todo o caminho. Não havia qualquer marca de pegadas afastando-se da trilha. Ligaram para a Polícia, que logo começou uma busca intensiva por toda a região. A luz do dia não trouxe qualquer nova evidência. Por toda parte havia neve, não muito profunda. E sempre macia, sem marcas, intocada. A Polícia continuava seu trabalho, incansável, ampliou a área de busca, procurou pelos locais mais recônditos e improváveis, informou-se com os poucos moradores do local, vasculhou profundamente o lago... continuou a busca por uma semana... mas nada, nenhum sinal do garoto. A família não sabia mais o que fazer, não havia mais nenhuma providência a tomar. O que mais os angustiava era a incerteza sobre o paradeiro de Edward. Pensamentos os mais diversos e sombrios lhes ocorriam, mas não existia um cadáver, não havia como dar o rapaz como morto; porém... como afirmar que estava vivo? E se estivesse nas mãos de algum sequestrador, ou de um louco qualquer, sofrendo toda sorte de maus tratos, sendo torturado, passando fome, frio, sentindo medo? E assim, não tiveram outra alternativa senão se resignarem à situação, num estado de grande aflição. Alguns dias depois, a mãe, arrasada, foi até o lago em busca de água. Ao voltar, contou que, quando passava pelo local onde tinham sido vistas as últimas pegadas, ouvira a voz do filho e saíra, desesperada, chamando por ele,

andando a esmo pelo lugar, já que a cada momento tinha a impressão de ouvir a voz vindo de uma diferente direção. Até que não aguentara mais, vencida pelo cansaço e pela emoção. Quando lhe perguntaram o que a voz falava, não conseguiu dizer, embora afirmasse que as palavras eram perfeitamente audíveis. Imediatamente, toda a família foi até o local, mas ninguém ouviu nada e a conclusão foi a de que tudo não passara de uma alucinação causada pela ansiedade da mãe e por seus nervos destroçados. Porém, nos meses seguintes, com intervalos irregulares de alguns dias, a voz foi ouvida por todos os membros da família, e também por outras pessoas. Todos declaravam estar absolutamente certos de que era a voz de Edward, e todos concordaram que o som parecia vir de muito longe, fraco, mas articulado de forma perfeitamente audível. E, contudo, ninguém foi capaz de precisar de que direção vinha o som ou de repetir as palavras ditas. Os intervalos de silêncio foram aos poucos tornando-se mais longos, e a voz ficando mais fraca e distante, até que, no verão, parou de ser ouvida. Se alguém conhece o destino de Edward Ashmore, esse alguém provavelmente é sua mãe. 

 

Lindsay Ashmore desapareceu misteriosamente, nova (45 anos), saúde perfeita, física e psicológica, uma mulher que nunca foi suicida, que não tinha inimigos. Num dos dias em que ela foi ao lago buscar água, sentia-se estranhamente bem, serena, em paz, poder-se-ia mesmo dizer... feliz, o que não sentia desde que o filho sumira. O dia de Sol parecia mais claro e alegre do que nunca, ela ouvia mais forte o canto dos pássaros, o ruído aconchegante dos esquilos buliçosos juntando nozes, enxergava as flores mais bonitas e mais coloridas, a água mais límpida e cristalina, a correr com um som gostoso e repousante... tudo tinha uma atmosfera aprazível que a fez ficar ali por mais tempo. Recostou-se em um salgueiro antigo à beira do lago, de olhos fechados, sentindo, ouvindo e relaxando. E tão tranquila ela estava que acabou adormecendo. Sonhou... sonhou longamente, por tanto tempo que no fim o sonho acabou como que se misturando à realidade. Sonhou coisas doces e felizes... com sua infância, um tempo alegre e despreocupado... lá estava ela, uma menina vivaz a brincar com os irmãozinhos no grande pátio da casa no interior. Ela observava o irmão mais velho cavocar a terra procurando minhocas, quando apareceu um menino da vizinhança. Nunca o tinham visto, devia ter se mudado há pouco tempo. Era bem claro, tinha cabelos castanho-claros encaracolados, era magrinho, usava uma camisa e uma bermuda azul-claro e estava descalço. Era simpático, dado, meigo, logo quis ajudar a procurar minhocas. Mas tinha um olhar estranhamente distante e melancólico, e vez por outra ficava calado, a olhar para o infinito, como que numa outra dimensão. Não quis contar seu nome, alegando achá-lo muito feio. Disse que podiam chamá-lo David. 

Fez amizade com Lindsay, conversavam longamente, trocavam confidências, segredos, sonhos, inventavam aventuras... era como se se conhecessem há muito tempo, desde um tempo longínquo, indefinível, não se sabe se no futuro ou no passado. Tinham uma ligação muito forte. Tornaram-se melhores amigos e eram inseparáveis. Certo dia David disse a Lindsay que ia lhe dar um presente, algo que ele gostava muito e só daria para ela, para mais ninguém, pediu que guardasse com cuidado e carinho para sempre - e frisou o "para sempre".

- Para você nunca esquecer de mim, pois eu nunca vou esquecer de você. Para selar nossa amizade, para que ela seja eterna.

Entregou-lhe um pequeno volume enrolado em papel de seda branco e amarrado com uma fitinha de cetim cor de pêssego rosado. Ela, excitada, abriu o pacotinho, os olhinhos brilharam de encantameneto: era uma bela, translúcida e reluzente pedra azul-clara... uma água-marinha, redonda, perfeitamente lapidada em múltiplas facetas.
- Ah, David, que coisa tão linda! - ela disse. - Ganhou de alguém? Encontrou em algum lugar?
Ele respondeu:
- Segredo. Um dia te conto...
Nisso, Lindsay acordou, meio decepcionada, mas logo a sensação boa de antes voltou, acrescida do prazer do sonho, um daqueles muito realistas, que parecem realmente terem sido vividos. A pedra lhe parecia ainda tão nitida, tão palpável... Evidente que não podia guardá-la, mas guardou a lembrança dela, no mais bonito e secreto de sua memória. Voltou para casa cantarolando uma canção antiga e bonita... todos estranharam, mas ficaram contentes com

a sua alegria. Estendeu-se na cama para sonhar acordada, prolongar aquela sensação tão doce e rara... foi então que, distraída, olhou para a penteadeira, onde ficava seu porta-jóias, espelho, pente e escova de cabelos de prata, seus perfumes... e lá estava ela, reluzente, exatamente igual a no sonho, destacando-se entre todos os objetos, a água-marinha. Engraçado, não se espantou nenhum pouco, achou natural, apenas sentiu-se muito feliz... apaziguada e feliz... Voltou para a sala, para os seus. Sentia reavivado seu amor pelo marido, pela mãe e pelos filhos. Tinha para cada um uma palavra boa, um gracejo, uma delicadeza, uma carícia suave... o ambiente estava tão bom e pacífico que quase esqueceram de almoçar. A criada serviu a mesa e o almoço parecia saboroso, o clima estava gostoso, animado, como nos melhores tempos da família antes de perderem o filho, neto e irmão. E o dia transcorreu tranquilo e feliz, todos próximos e em harmonia, foram até tarde conversando, brincando, contando histórias, trocando afeto, comendo bolinhos de chuva com chocolate gelado e alguns goles de Cointreau. Quando resolveram se deitar, Lindsay disse para todos:

- Olhem, vocês podem até pensar que estou embriagada e melosa (deu uma risada gostosa, mas suave), mas o que vou dizer é sério: aconteça o que acontecer, nós estaremos sempre juntos e felizes. 
Ninguém ligou muito, acharam mesmo que ela estava falando no calor do pilequinho. E foram todos dormir, satisfeitos e plenos. No dia seguinte, William Ashmore não viu a esposa ao lado na cama. Encontrou um bilhete sobre seu travesseiro: "Querido, fui me juntar a Edward. Estou feliz. Não me procurem. Não se entristeçam. Estou com vocês também, e sempre estarei. Quando precisarem de mim, apanhem a água-marinha sobre a penteadeira."

 

 

Igreja sinistra

 

A MISSA DAS SOMBRAS

Adeline Rouveron era uma idosa que nunca houvera casado. Conservava, apesar das marcas da idade, os vestígios de uma grande beleza, e possuía um ar melancólico. Morava no povoado de Hyères, numa esquina da Rue des Acacies, num palacete que dava para o jardim do convento das irmãs Ursulinas. Não tinha nenhum parente ou amigo conhecido. Havia na porta principal desse palacete figuras e inscrições meio apagadas. 0 pároco da igreja de Santa Bernadette, Padre Levasseur, dizia ali estar escrito, em latim: "o amor é mais forte que a morte". Adeline Rouveron vivia sozinha e ocupava-se em tocar piano, ler e fazer rendas muito bonitas, bem acabadas e finíssimas. Dizia-se que, aos 18 anos, amara o jovem cavaleiro Anselme d'Aumont-Cléry, com quem noivara secretamente. Mas as pessoas não acreditavam absolutamente nesse noivado, diziam tratar-se de uma fantasia criada por Adeline, por mais que ela tivesse na mão um desses anéis em que o ourives coloca duas mãozinhas unidas e que era costume outrora os noivos trocarem. Adeline vivia santamente. Frequentava a igreja e, todas as manhãs, qualquer que fosse o tempo, ia participar da missa das seis horas.

Certa vez, à noite, quando ela dormia em seu quarto, foi despertada pelo toque dos sinos. Certa de estarem eles anunciando a primeira missa, a piedosa senhora vestiu-se e desceu à rua, mas a noite estava tão fechada que se não via absolutamente nada; claridade alguma era perceptível no céu negro. E reinava tamanho silêncio nessas trevas,
nem mesmo um cão ladrava ao longe, que dir-se-ia estar completamente à parte do mundo dos vivos. Porém, Adeline, que conhecia cada uma das pedras onde pisava e que podia ir à igreja de olhos fechados, alcançou, sem dificuldade, a esquina da rua da paróquia, e logo estava defronte dela. Viu que saía pela entrada uma intensa e desconhecida claridade de círios. Entrou e então encontrou-se numa reunião que enchia a igreja. Porém, estranhamente, ela não reconhecia nenhum dos presentes, e ficou muito surpresa ao vê-los trajados em veludo e brocado, plumas no chapéu, alguns trazendo espadas, à maneira de épocas muito passadas. Havia senhoras que seguravam longas bolsas de castão de ouro e damas com penteados bem elaborados, presos com pentes em diadema. Algumas seguravam leques. Cavaleiros davam a mão a essas senhoras, de rostos pintados e modos reservados. E todos iam se colocando em seus lugares, sem o menor ruído, e não se ouvia, enquanto andavam, nem o som dos passos no lajeado, nem o roçar dos tecidos. As naves laterais enchiam-se de muitos jovens artesãos, de casaco pardo, calções de fustão e meias azuis, que seguravam pela cintura raparigas belas, rosadas, que

mantinham os olhos baixos. E, junto às pias de água benta, camponesas de saia rodada e corpinho de atar sentavam-se no chão com a tranquilidade dos animais domésticos. E todas aquelas pessoas estavam silenciosas, pareciam imobilizadas para sempre, num mesmo pensamento, suave e triste. Tudo isso era muito inusitado e assustador, mas a curiosidade de Adeline venceu o medo, e mesmo, ela se sentia um tanto segura por estar na igreja, lugar santo. E então ajoelhou-se em seu lugar costumeiro. Viu o sacerdote caminhar para o altar, precedido por dois coroinhas. Não reconheceu nem o sacerdote nem os ajudantes. Começou a missa. Mas, para seu maior espanto, era uma missa silenciosa, na qual não se ouvia absolutamente o som dos lábios que se moviam, nem o rumor da sineta agitada pelos coroinhas. De repente, Adeline sentiu-se sob o olhar e sob a influência de seu misterioso vizinho e, olhando discretamente, sem quase virar o rosto, reconheceu, confusa, misturando sentimentos de medo e contentamento, o jovem cavaleiro Anselme d'Aumont-Cléry, que a havia amado e que morrera fazia 45 anos. Vestia o traje de caça, com botões dourados, que ele usara no dia em que, tendo-a encontrado no Bosque dos Salgueiros, roubara-lhe um beijo. Conservava a sua mocidade e seu bom aspecto. Seu sorriso ainda mostrava uma dentadura de jovem lobo. Adeline, vencendo o medo, disse-lhe, baixinho:

- Belo cavaleiro, vós que fostes meu amigo e a quem dei outrora o que uma jovem possui de mais precioso, Deus vos tenha em sua graça. Dizei-me, por Deus, quem são essas pessoas que assistem a esta estranha missa. Dizei-me o que está acontecendo aqui!
0 cavaleiro respondeu com uma voz mais débil que um sopro e, não obstante, mais clara que o cristal:
- Adeline, esses homens e essas mulheres são almas do purgatório que ofenderam a Deus, pecando, a nosso exemplo, por amor, mas que nem por isso estão desligadas de Deus, porque seu pecado, a exemplo do nosso, foi sem maldade. Enquanto separadas daqueles que amavam sobre a Terra, elas se purificam no fogo do purgatório, padecem as dores da ausência, e para elas esse sofrimento é o mais cruel. São tão infelizes que um anjo do céu se apiedou de seu martírio. Com o consentimento de Deus, reúnem-se, o amigo e a amiga, todos os anos, durante uma hora da noite, em uma igreja, onde lhes é permitido assistir à Missa das Sombras, segurando-se pela mão. E tenha certeza, minha querida, que se neste momento nós dois estamos aqui lado a lado, foi pela graça e permissão de Deus. Ela respondeu:
- Mas isto tudo é muito sinistro... Grande e cruel castigo foi dado por Deus aos que se amaram, ainda que com o breve e insignificante consolo de se reencontrarem por uma hora ao ano. De qualquer modo, possa também o Senhor me inspirar, finalmente, pesar e arrependimento pelo pecado que cometi convosco. Pois a verdade é que, já de

cabelos brancos e idade avançada, ainda não me arrependo minimamente de vos ter amado, meu belo cavaleiro.
E continuou:
- No entanto, Anselme, mesmo sendo tão pouco e tão lúgubre o momento concedido aos que se amam, bem desejaria eu morrer para voltar a ser formosa como nos dias em que te dava de beber na floresta.
Enquanto falavam assim, baixinho, um cônego muito idoso recolhia as esmolas e apresentava uma grande salva de cobre aos presentes, que ali deixavam cair sucessivamente moedas antigas, desde muito tempo fora de circulação: escudos de seis libras, florins, ducados, nobres com a rosa, e as moedas caíam em silêncio. Quando a salva lhe foi apresentada, o cavaleiro depositou um luís, que não fez mais ruído que as outras moedas de ouro ou de prata. Depois, o cônego parou em frente de Adeline, que procurou em seu bolso, sem nele encontrar um níquel. Então, não
desejando recusar sua dádiva, tirou do dedo o anel de noivado que Anselme lhe dera e o depositou na concha de cobre. 0 anel de ouro, ao cair, ressoou como um pesado badalo de sino e, ao ruído atroador que ele fez, Anselme, o cônego, o oficiante, as damas, os cavaleiros, toda a assistência foram perdendo a nitidez e a consistência e desaparecendo no ar; os círios se apagaram, e Adeline ficou sozinha, desconsolada e agora muito apavorada em meio a esse silêncio pesado e essas trevas medonhas e lúgubres. Paralisada de medo, foi com muito esforço que conseguiu mover-se e dirigir-se, desnorteada, em passos vacilantes, lentos, trôpegos, tateando aqui e ali, de volta a sua casa.

Na manhã seguinte a essa noite profundamente perturbadora, Adeline Rouveron foi encontrada morta em seu quarto. E o padre de Santa Bernadette encontrou, na salva dourada que servia para o peditório, um anel de ouro com duas mãos entrelaçadas.

 

 

Flor túmulo

 

A FLOR DO TÚMULO

Elisa morava no Rio de Janeiro, na Rua Gerenal Polidoro, perto do Cemitério São João Batista. Bom, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e muita gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada. Se o enterro era muito importante, desses de artista ou de figurão da política, Elisa costumava ficar no portão do cemitério para dar uma espiada. Ela se impressionava com as coroas, além de ter curiosidade em ler o que estava escrito nelas. Às vezes elas entravam no cemitério a acompanhar a cerimônia fúnebre até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que a moça adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar para passear no Rio! E no caso dela, quando estivesse mais entediada ou incomodada, bastaria tomar um bonde em direção à praia - por exemplo, a deliciosa Copacabana -, passear, observar o mar, conversar com pessoas... Tinha tanta beleza e prazer à sua disposição, a cinco minutos de casa, e tudo grátis. Mas por preguiça e mais a curiosidade dos enterros, deu para andar no São João Batista, contemplando túmulos. Coitada! 

No interior isso não é raro… Mas a moça era carioca e sempre morou no Rio. Trabalhava como secretária numa empresa de importação e exportação. E o fato é que tomou gosto por passear todas as tardes – ou melhor, “deslizar” - pelas alamedas acinzentadas do cemitério, mergulhada em cisma. Olhava uma inscrição, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim, há de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia ser? Talvez mesmo subisse ao morro, onde está a parte nova do cemitério, com as covas mais modestas. Certo dia, ao passar por um já seu conhecido mausoléu - antigo, escurecido pelo tempo, mal cuidado, abandonado, sem nenhuma inscrição ou atrativo -, chamou-lhe a atenção uma pequena mas completamente desenvolvida flor que nunca vira ali antes, e admirou sua beleza simples mas vistosa, destacando-se ainda mais por estar solitária no local, a única coisa a enfeitar e tirar um pouco o ar depressivo e lúgubre daquela tumba. E num ato instintivo, quase como se não houvesse outra coisa a fazer, impelida sabe-se lá por que força misteriosa, apanhou-a. Continuou caminhando, observou a flor, notou que não era de nenhuma espécie conhecida, sentiu sua textura acetinada, cheirou-a (tinha um aroma ligeiramente semelhante ao de uma dama-da-noite)... mas acabou perdendo o interesse, não passava de uma simples flor bem comum, jogou-a para um canto qualquer, a umas oito ou nove quadras daquele mausoléu. Nem pensou mais nisso.

Já em casa, ocupada de bater ovos para fazer um bolo, de repente o telefone tocou. Ela atendeu.
– Aloooô…
– Onde está a flor que você tirou de minha sepultura?
A voz era longínqua, pausada, surda. Mas Elisa riu. E, meio sem compreender:
– O quê?
Desligou. Voltou para a cozinha. Cinco minutos depois, o telefone chamava de novo.
– Alô!
– Minha flor, a que você arrancou de minha sepultura. Onde está?
Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote. A moça riu de novo, mas preparada.
– Está aqui comigo, venha buscar.
No mesmo tom lento, severo, triste, a voz respondeu:
– Quero a flor que você me furtou. Devolva minha flor.
Era homem, era mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não se identificava. Elisa topou a conversa:
– Venha buscar, estou te dizendo.
– Você bem sabe que eu não posso buscar coisa nenhuma. Quero minha flor, e rápido.
– Vamos, diga logo quem está falando! 
– Devolva minha flor.
– Quem é você? - já estava se irritando. 
– Eu quero minha flor. Venha trazer-me o quanto antes.

O trote era estúpido, não variava, e Elisa, enjoando logo, desligou. Naquele dia não houve mais nada. Mas no outro dia, à mesma hora, o telefone tocou.
– Alô!
– Estou esperando minha flor.
Não ouviu mais. Jogou o fone no gancho, irritadíssima. Mas que brincadeira é essa! Voltou ao quarto, continuou sua leitura. Não demorou muito, o telefone tinia outra vez. E antes que a voz lamentosa e ameaçadora recomeçasse:
– Olhe, vire o disco. Já enjoou.
– Você tem que dar conta de minha flor. Você veio à MINHA cova e a pegou.  
– Essa é fraquinha. Não sabe de outra?
E desligou. Mas dessa vez, voltando ao quarto, começou a pensar na flor, assim como naquela pessoa idiota que a vira arrancá-la e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Pela voz não seria fácil saber. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se podia saber ao certo se de homem ou de mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como de interurbano. Na verdade, parecia vir de mais longe ainda… Começou a sentir medo. Naquela noite custou a dormir. E daí por diante é que não dormiu mesmo nada. A perseguição telefônica não parava. Sempre à mesma hora, no mesmo tom. Chegou a pensar se não

seria mesmo algum morto, mas isso era absurdo. Tentou deixar essa ideia de lado. No sexto dia, ouviu firme a cantilena e respondeu, furiosa, que fosse amolar outro cristão, deixasse de ser imbecil, e que se não parasse, ela tomaria providências. Avisou os pais e o irmão. Pelo telefone, os três, um a um, falaram em tom muito duro e ameaçador com "a voz". Estavam convencidos de que se tratava de algum engraçadinho absolutamente sem graça.
– A voz chamou hoje? - indagava o pai, chegando da cidade.
– Ora. É infalível! - suspirava a mãe, desalentada. Descomposturas não adiantavam. Era preciso fazer algo mais. Resolveram acionar a companhia telefônica, que começou um longo e minucioso trabalho de rastreamento, sem nada descobrir. Enquanto a telefônica continuava agindo, o pai e o irmão de Elisa resolveram também indagar, apurar na vizinhança, vigiar os telefones públicos. Dividiram entre si as tarefas. Passaram a frequentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas. Se alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvido dos dois se afiava. Mas nada. Ninguém reclamava flor de jazigo. Restava a rede dos telefones particulares. Um em cada apartamento, 10, 12 no mesmo edifício. Como descobrir? O rapaz começou a tocar para todos os telefones da Rua General Polidoro, depois para todos os telefones das ruas transversais, depois para todos os da linha dois-meia… Discava, ouvia o alô, conferia a voz – não era –, desligava. Trabalho cansativo, demorado e inútil, pois a pessoa da voz, além de estar disfarçando o tom, devia estar ali por perto – o tempo de sair do cemitério e tocar para Elisa - e bem escondida estava ela, que só se fazia ouvir quando queria, isto é, a uma certa hora da tarde. Essa questão de hora também inspirou à família algumas

diligências. Mas infrutíferas. Elisa deixou de atender telefone. Não falava mais nem com as amigas. Então a “voz”, que não parava de exigir a flor, começou a se tornar cada vez mais ameaçadora e tomou um tom mais forte e estranho, sinistro. Pensaram na hipótese de tratar-se de algum psicopata. Todos os familiares já estavam muito incomodados, em desespero mesmo. E Elisa estava já muito prejudicada física e emocionalmente, sentia dores de cabeça, de estômago, vivia em ansiedade e medo, caiu numa depressão grave, que misturava angústia e desalento com irritabilidade. Estava intratável, agressiva, isolou-se, já nem saía do quarto, e a seguir ficou completamente prostrada, caiu de cama, precisou pedir licença no trabalho. A família não queria escândalos, mas teve de queixar-se à polícia, que logo começou a investigar o caso diligentemente, mas nada se apurava. Continuaram os trabalhos, e o chefe das investigações deu-lhes um conselho:
- Procurem tranquilizar-se, não se preocupar, e aguardem os acontecimentos. Estamos fazendo todo o possível.
E a voz continuava. Elisa estava um trapo humano, já perdera o apetite, as forças, o equilíbrio emocional. Andava pálida, sem ânimo para nada, e com crises histéricas que assustavam toda a família. Sentia-se miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer conhecia. E nem mesmo se lembrava da cova de onde arrancara aquela maldita flor, muito menos onde a havia jogado. Resolveu explicar isso à "voz", que não se sensibilizou minimamente e continuava da mesma forma, e cada vez pior. Elisa estava de tal forma transtornada, abatida e quase catatônica em alguns momentos, que os pais resolveram procurar auxílio profissional, sem economizar para encontrar o

melhor para a filha. Por um bom tempo ela se tratou, mas não tinha nenhum progresso, continuava num estado lastimável, já a ponto de ter um colapso psíquico. Temia-se por sua sanidade mental. O pai jogou a última cartada: espiritismo. Descobriu um médium tido por fortíssimo, a quem expôs longamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contato com a alma despojada de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era sua esperança de emergência, mas os poderes sobrenaturais se recusaram a cooperar, ou eles mesmos são impotentes, ou então tudo isso não passa de charlatanice. E a voz continuou, metódica, sepulcral, horrenda, quase demoníaca. Seria mesmo de vivo? (Às vezes a família ainda conjecturava, embora agora estivesse completamente confusa.) De alguém que houvesse perdido toda noção de misericórdia? E se fosse de morto, como julgar, como vencer os mortos? Em qualquer das hipóteses, a situação era desesperadora ao extremo, e ninguém conseguia vislumbrar qualquer solução. Alguém pede, exige, continuamente uma certa flor, e esta flor não existe mais para lhe ser dada. Mas... e Elisa?

A moça morreu ao cabo de alguns meses, exausta, a energia vital completamente esvaída, além de uma ansiedade constante que lhe gerava muita taquicardia e alterações violentas de pressão. Até que seu organismo não resistiu mais e acabou tendo uma parada cardíaca irreversível.  

Mas sosseguem, para tudo há esperança: a voz nunca mais pediu.

 

 

 Tigre e dama

 

A DAMA OU O TIGRE?

Em tempos remotos, vivia um rei semi-bárbaro, cujas ideias, decisões e atos costumavam ser brilhantes, criativos, originais e sutis, sobretudo se comparados aos de líderes de civilizações bárbaras contemporâneas. Porém era arbitrário e implacável, como convinha à metade bárbara de sua natureza. Mas tinha tal encanto, poder de persuasão e carisma, que acabava por ser um homem irresistível. Tinha um espírito auto-suficiente e determinado; quando decidia algo, invariavelmente transformava em realidade o seu objetivo, as suas variadas fantasias de homem de imaginação exuberante. Quando todos os membros dos seus domínios domésticos e políticos se moviam maciamente no rumo indicado, o seu temperamento era brando e alegre; mas caso surgisse qualquer pequeno impedimento, ou um ou outro dos elementos desses domínios opusessem alguma resistência, ele destruía todas as irregularidades e obstáculos, pois muito lhe agradava endireitar o que estava torto e exibir nobreza e poder. Uma das mostras de que seu barbarismo era reduzido à metade e seus atos tinham também uma função útil e nobre era a arena pública, onde, pelas exibições da valentia humana e animal, os espíritos dos seus vassalos eram aperfeiçoados e cultivados. O soberano também dava grande valor à satisfação de seu espírito lúdico, apreciava um elemento de diversão mesmo nas situações mais sérias e graves. Em outras palavras, costumava unir o útil ao agradável.

A arena do rei fora construída não para dar ao povo uma oportunidade de ver tragédia, sangue e gladiadores moribundos, nem para alertar o povo sobre o inevitável desfecho da desobediência às determinações políticas e religiosas. Esse vasto anfiteatro, com suas galerias circulares, suas misteriosas abóbadas e passagens secretas, constituía um agente de poética, imaginativa (e duvidosa) justiça, onde o crime era punido ou a virtude recompensada, pelos decretos tão somente de uma imparcial e incorruptível sorte (ou destino, como queiram chamar.) Quando um vassalo era acusado de um crime tal que pudesse interessar o rei, baixava-se um aviso público, designando o dia em que o destino do acusado seria decidido na arena, cuja concepção e singular forma de justiça provinha unicamente do cérebro criativo e extravagente desse homem, que não conhecia tradição a que devesse maior lealdade do que agradar à sua fantasia, ao seu bárbaro idealismo. Quando todo o povo se encontrava reunido nas galerias, o rei, rodeado pela sua corte, sentado no seu alto trono, dava um sinal, e uma porta abaixo dele se abria, saindo dela o acusado. Diretamente em oposição a ele, no outro lado, havia duas portas exatamente iguais, colocadas lado a lado. Era dever e privilégio do indivíduo em julgamento caminhar diretamente para essas portas e abrir uma delas, aquela que desejasse. (Como dissemos, a justiça que o julgaria era a própria sorte, imparcial e incorruptível. E

para o monarca, em sua visão excêntrica e singular, era evidente que essa justiça era a mais inteligente e correta de todas. Se o acusado abrisse uma porta, sairia dela um tigre faminto, o mais forte e feroz que pudesse ser encontrado, o qual imediatamente saltaria sobre ele e o faria em pedaços, como punição por sua falta. Nesse momento, dolentes sinos ressoavam, lamentos eram lançados por indivíduos alugados para esse fim e colocados nas bordas exteriores da arena. Mas se o súdito abrisse a outra porta, sairia dela uma dama, a mais adequada à sua idade e condição, escolhida por Sua Majestade entre as suas mais belas vassalas; e com essa dama ele iria imediatamente se casar, como recompensa por sua inocência. Não importava se ele já possuísse mulher e filhos, ou se seu coração se houvesse comprometido com outra de sua própria escolha; o rei não consentia que tais obrigações viessem a interferir no seu grande plano de retribuição e recompensa (e prazer pessoal.) E por fim, uma outra porta se abria, e um sacerdote, seguido por um grupo de coristas e de bailarinas, modulando canções alegres e inspiradoras em clarinetes dourados, avançava até o lugar onde se achava o par, e o casamento era celebrado ali mesmo. Então sinos de bronze repicavam alegremente, o povo lançava brados de contentamento, e o homem inocente, precedido por crianças que espalhavam flores no seu caminho, conduzia a noiva para a sua casa. Ora o tigre saía de uma porta, ora de outra,

assim como a dama. O acusado não podia saber se seria devorado ou se sairia casado. Esse evento era grandemente  popular. Quando o povo se reunia num dos dias de julgamento, como nunca sabia se iria testemunhar uma morte sangrenta ou um festivo casamento, esse elemento de incerteza emprestava à ocasião um enorme interesse. Assim, divertia-se a massa e o monarca, e a parte pensante da comunidade não tinha o mínimo direito de questionar o sistema e acusá-lo de iníquo.

O rei possuía uma filha belíssima, e com uma alma tão ardente e imperiosa como a sua própria. Era a menina dos seus olhos, ele a amava acima de tudo e todos. Entre os seus cortesãos, sem o seu conhecimento, havia um jovem que mantinha um romance com a princesa. Ele tinha aquela pureza de sangue e vileza de espírito comuns aos heróis que amam as donzelas reais. Ela estava muito feliz com o seu amado, que era extremante belo e bravo, e o amava com uma ousadia e ardor próprios à sua natureza intensa e bárbara. E de tal forma se amavam, e com tanta petulância, que pouco se preocupavam em esconder o romance. Esse amor transcorreu feliz durante muitos meses, até que um dia o rei acabou por descobri-lo. Ficou ferozmente ultrajado, não só por imaginar a filha preciosa, jovem e donzela sendo tocada, maculada e desrespeitada por um homem, como também por esse homem tratar-se de um reles súdito, além da ousadia deles em afrontarem o soberano. E não hesitou por um momento em executar a sua justiça muito particular: o jovem foi imediatamente lançado na prisão, e marcou-se o dia para o seu julgamento na arena. Naturalmente, essa era uma ocasião especialmente importante, e todo o povo estava muito excitado e  interessado no acontecimento. Jamais ocorrera caso semelhante; jamais um homem, quanto mais um simples súdito,

ousara envolver-se com a filha desse rei de personalidade tão caprichosa e implacável. As jaulas de tigres foram vistoriadas, a fim de se selecionar o monstro mais feroz para ser levado à arena. E todas as virgens jovens e mais lindas da corte foram cuidadosamente inspecionadas por juízes competentes. Para o monarca, não importava em absoluto como o fato se processara, o jovem iria privar-se desse amor. O dia designado chegou. Vindo de longe e de perto, o povo foi-se reunindo e comprimindo nas grandes galerias da arena; e multidões, impossibilitadas de entrar, amontoavam-se contra as paredes exteriores. O rei e a sua corte achavam-se nos seus lugares, em oposição às portas gêmeas — aquelas portas fatídicas, tão terríveis na sua similitude. Tudo estava pronto. O sinal foi dado. Uma porta por baixo da bancada real abriu-se, e o namorado da princesa apareceu na arena. Alto, belo, imponente, provocou exclamações gerais de admiração e foi efusivamente saudado, além de provocar um surdo cochichar: "Que lindo rapaz!" "Que terrível situação a desse moço!" - diziam. Quando o jovem avançou ao centro da arena, voltou-se, como era o costume, para reverenciar o rei, em cuja direita estava sentada a princesa. Desde o momento em que fora divulgado o decreto, ela não tinha pensado em mais nada, noite e dia, senão nisso. Possuindo mais poder, influência

e força de caráter do que o próprio pai, ela tinha feito aquilo que nenhuma outra pessoa conseguira: havia-se apossado do segredo das portas. Sabia em qual dos dois compartimentos estava a jaula do tigre, e em qual deles a dama esperava. E não somente isso, como também descobrira quem era a dama: uma das mais lindas e exuberantes donzelas de toda a corte. Algumas vezes ela tinha visto, ou imaginado ver, aquela bela criatura lançando olhares de admiração para o seu amado, e às vezes pensava que esses olhares eram até retribuídos. Uma ou outra vez, ela os tinha visto conversando. Conversas que haviam durado apenas um momento, porém muita coisa pode ser dita num breve espaço de tempo. Talvez eles tivessem trocado ideias banais, sem importância e não houvesse interesse um pelo outro, mas como poderia ela sabê-lo? Com a intensidade de seu sangue selvagem transmitido através de longas linhagens de ancestrais bárbaros, além da fúria e ressentimento naturais de uma mulher supostamente traída, ela odiava a mulher que corava e tremia atrás daquela porta silenciosa. Quando o acusado avistou a princesa sentada, com a face mais pálida do que qualquer outra no vasto oceano de fisionomias ansiosas que o rodeavam, ele sentiu, ao encontrarem-se os seus olhares, pelo poder de percepção que é dado àqueles cujas almas se acham fundidas numa só, que ela sabia atrás de que porta se achava o tigre e atrás de qual delas estava a dama. Na verdade, ele havia mesmo esperado que ela conseguisse descobrir esse segredo. Conhecia sua natureza, e estava seguro de que

ela não descansaria até conseguir seu intento. Quando seu rápido e ansioso olhar formulou a pergunta silenciosa “Qual?” Ela de imediato, ciente de que não havia um instante a perder, levantou muito sutilmente a mão e fez um leve e rápido movimento para a direita. Ninguém, a não ser seu amado, viu esse gesto. Todos os olhos estavam fixos naquele homem no centro da arena. Ele voltou-se, e com passo firme e rápido atravessou o espaço vazio. Todos os corações pararam de bater, toda respiração foi suspensa. Sem a menor hesitação, ele dirigiu-se à porta da direita e abriu-a.

A dúvida agora é: foi o tigre que saiu daquela porta? Ou foi a dama?
A questão envolve um estudo do coração humano, que nos conduz através dos mais complexos labirintos de paixões. Pense na princesa, honrado leitor, aquela princesa de sangue ardente e semi-bárbara, sob os fogos combinados e contraditórios do desespero e do ciúme. Ela tinha perdido o amado. Mas quem o possuiria? Quantas vezes, nas suas horas de vigília e nos seus sonhos, não teria estremecido de desenfreado horror, ao imaginava seu amado estraçalhado pelas garras e dentes mortais do tigre... Por outro lado, nos seus mortificantes devaneios, teria imaginado ele abrindo a porta onde se encontrava a dama e antevisto uma arrebatadora felicidade de ambos, ele conduzindo-a para fora, em alegria, triunfo e apaixonado fascínio, ouvindo os brados alegres da multidão e o festivo repicar dos sinos. O sacerdote, com sua comitiva, avançando até o par, fazendo-os marido e mulher diante dos seus próprios olhos; vê-los se afastarem, juntos, pisando um caminho de flores, e, entre os brados ensurdecedores da multidão, um único grito de desespero — o dela — ficaria perdido e afogado... E aquele tigre medonho, gritos lancinantes do amado, mutilação, um mar de sangue! A sua decisão entre entregar o eleito à dama ou ao tigre teria sido tomada depois de dias e noites de angustiosa deliberação. Talvez soubesse com muita antecedência qual dos destinos lhe indicaria.

De qualquer modo, não houve a mais leve hesitação da princesa quando moveu sua mão para a direita. A decisão constitui um ponto que não deve ser levianamente considerado. Assim, deixo-a para você, leitor: quem saiu da porta aberta — a dama ou o tigre?


 

Chemosh

 

CHEMOSH

8 de maio. É um belo e agradável dia de Sol, sinto-me muito bem. Passei a manhã toda lendo, recostado no plátano que fica no pátio de casa. Gosto de viver aqui, pois é onde estão velhas recordações, aquelas raízes profundas e delicadas que prendem o homem ao solo de seus antepassados. Adoro a casa onde cresci, adoro Le Havre. Das janelas, vejo o Sena, no outro lado da estrada, quase atravessando minhas terras. À esquerda, está a cidade de Rouen, com seus telhados azuis e torres góticas. Estas últimas são cheias de sinos que tocam nas manhãs, num distante tinido, belas canções de metal.

12 de maio. Estive um pouco febril nos últimos dias e sinto-me doente e desalentado. De onde vêm essas misteriosas influências que transformam a alegria em desânimo? Será que do ar invisível, cheio de forças desconhecidas? Acordo com a melhor disposição, vou até o jardim e, de repente, depois de andar um pouco, volto para casa infeliz, sem nenhum motivo aparente. Por quê? Seria um calafrio que me passou pela pele e abalou meus nervos, deixando-me desanimado? Seria a forma das nuvens, a cor do céu ou os objetos à minha volta que perturbaram meus pensamentos? Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos sem olhar, tudo o que tocamos sem querer, tudo o que manejamos sem sentir, tudo o que encontramos sem ver claramente, tem rápida e talvez inexplicável influência sobre nossos sentidos, nossa mente e nossas almas. Como esse mistério do invisível é profundo! Não podemos compreendê-lo com nosso limitadao conhecimento nem com nossas tênues percepções.

16 de maio. Positivamente, estou doente. E estava tão bem no mês passado... Estou horrivelmente febril, debilitado, e isso faz minha alma sofrer tanto quanto o corpo. Tenho, continuamente, a horrível sensação de perigo iminente, o receio de alguma futura desgraça ou da morte próxima. Pressentimento que talvez seja o acesso de uma doença ainda desconhecida, que germina na carne e no sangue.

17 de maio. Acabo de consultar o médico, pois não conseguia mais dormir. Ele disse que o pulso estava rápido, os olhos, dilatados, os nervos, à flor da pele, mas que não encontrou sintomas alarmantes. Devo tomar algumas duchas e brometo de potássio.

25 de maio. Nenhuma mudança. Meu estado é realmente estranho. Quando a noite se aproxima, sou invadido por uma incompreensível intranquilidade, como se a noite escondesse alguma ameaça grave. Janto às pressas e então procuro ler, mas não consigo me concentrar, por mais que me esforce. Caminho de um lado para outro da sala, angustiado, deprimido, com uma sensação forte, porém difusa e indefinida, de medo de tudo, medo do sono, medo da cama... Lá pelas 10 horas subo ao quarto. Assim que entro dou duas voltas à chave e ponho a tranca na porta. Tenho muito medo... de quê? Até há pouco, não tinha medo de nada... Abro os armários e olho embaixo da cama. Escuto... o quê? Não é estranho que uma simples sensação de mal-estar, a má circulação, talvez a irritação de um filamento nervoso, uma ligeira congestão, um pequeno distúrbio no delicado funcionamento de nosso mecanismo vivo, possa transformar o mais despreocupado e valente dos homens em aflito, melancólico e amedrontado? Vou para a cama e espero o sono como quem espera um carrasco, ainda cheio de medo, o coração acelerado, até que adormeço de repente, sem nem um pingo daquela agradável e reconfortante sensação do sono chegando. Não o sinto vir como antes, calma e deliciosamente. Agora ele me fecha os olhos bruscamente, me causa um completo desprazer. Durmo... bastante tempo... talvez duas ou três horas...

Então um sonho. Não... um pesadelo apossa-se de mim. Eu estou na cama, dormindo, e sinto que alguém se aproxima, olha-me, toca-me, sobe em minha cama, ajoelha-se sobre meu peito, toma meu pescoço entre as mãos e o aperta com força a fim de estrangular-me. Luto, dominado por aquela terrível sensação de impotência que nos
paralisa durante os sonhos. Tento gritar... mas não consigo. Quero mover-me... não consigo. Faço um grande esforço para tentar derrubar essa criatura que está me esmagando, me sufocando... não consigo. E, então, acordo de repente, tremendo e banhado de suor. Acendo uma vela e vejo aliviado que estou sozinho. Finalmente caio no sono e durmo em paz até de manhã.

2 de junho. Os pesadelos continuaram me assombrando até hoje. Meu estado de saúde piorou. O que está acontecendo comigo? O brometo não está surtindo nenhum efeito. Às vezes, a fim de ficar bem cansado, vou dar um passeio na floresta de Roumare. Costumava pensar que o ar fresco, impregnado do cheiro de ervas e folhas, me daria novo ânimo. Enveredava por uma estrada de caça e então seguia na direção de La Bouille, por uma trilha que cruzava uma floresta de árvores muito altas e antigas, que formavam um espesso teto de um verde quase negro. Um repentino arrepio percorreu-me a espinha, não de frio, mas de agonia. Apressei o passo, estupidamente amedrontado
sem razão. De repente pareceu-me estar sendo seguido, que havia alguém nos meus calcanhares, perto, bem perto de mim, próximo o bastante para tocar-me. Voltei-me precipitadamente, mas estava só. Nada vi atrás de mim, exceto a trilha vazia, horrivelmente vazia, cercada de altas árvores; à minhea frente também se estendia a perder de vista, parecendo sempre a mesma, terrível. Fechei os olhos. Comecei a rodar como pião, bem depressa. Por quê? Quase caí e abri os olhos: as árvores dançavam ao meu redor e a terra girava. Fui obrigado a sentar-me. E então, que ideia estranha! Não sabia de mais nada. Saí para a direita e voltei à alameda que me conduzira ao centro da floresta.

2 de junho. Passei uma noite horrível. Vou partir por algumas semanas, pois sem dúvida uma viagem me fará bem.

2 de julho. Voltei, completamente curado e ainda fiz ótima viagem. Fui ao Mont-Saint-Michel, que ainda não conhecia. Que vista, quando se chega a Avranches como eu, quase no fim do dia! Então fui ao jardim público, nos limites da cidade. Vi, assombrado, uma enorme baía que se estendia até onde os olhos alcançavam. No meio da baía, sob um céu dourado, havia uma ilha exuberante. O Sol acabara de se pôr e, no horizonte ainda flamejante, aparecia o contorno do fantástico rochedo com um monumento em seu cume. Senti vontade de ir até lá conhecer essa bela ilha, mas já era tarde e eu tinha de voltar. 

3 de julho. Dormi mal, estou novamente febril e com um grande mal estar. Certamente fui contaminado pelo cocheiro, que está sofrendo exatamente como eu. Ontem, quando voltei para casa, notei que estava muito pálido e lhe perguntei:
- O que tem, Ambroise?
- Não consigo repousar, e as noites devoram meus dias. Não sei o que tenho e isso me dá muito medo.

4 de julho. Estou de novo doente, pois meu antigo pesadelo voltou. A noite passada, senti alguém inclinando-se sobre mim e sugando minha vida por entre meus lábios, de minha garganta. Depois, levantou-se, saciado, e acordei, tão cansado, esmagado e fraco que não conseguia me mover. Se isso continuar, viajarei novamente.

5 de julho. Será que estou louco? O que aconteceu a noite passada é tão estranho que perco a cabeça só de pensar! Trancara a porta, como faço todas as noites, e, tendo sede, bebi um copo d'água. Fui para a cama e passei por um de meus sonhos. Este foi ainda mais terrível: eu estava sendo assassinado e acordei (mas apenas no sonho) com uma faca no pulmão, com a respiração arquejante, coberto de sangue, então não conseguia mais respirar e estava quase morrendo. Quando acordei de verdade, completamente apavorado, com taquicardia e suando muito, resolvi beber um pouco d'água. Acendi uma vela e fui até a mesa onde estava a garrafa de água, mas... ela estava vazia! Completamente vazia! A princípio não consegui entender absolutamente nada. Mas, de repente, tive uma sensação tão horrível que precisei me sentar, ou melhor, caí numa cadeira! Levantei e olhei à volta, sentei-me de novo, tomado de espanto e medo, em frente à garrafa. Encarava-a, tentando adivinhar, e minhas mãos tremiam. Alguém bebera a água, mas quem? Eu? Eu, sem dúvida. Só poderia ter sido eu. Nesse caso era sonâmbulo. Quem entenderá minha agonia? Quem entenderá a emoção de um homem, são de espírito, completamente acordado, cheio de bom senso, que procura em uma jarra um pouco de água que desapareceu enquanto dormia? Voltei para a cama, mas não consegui mais dormir.

6 de julho. Estou ficando louco. Mais uma vez todo o conteúdo da jarra de água foi tomado durante a noite... ou melhor, eu o bebi! Mas será que sou eu? Sou eu? Quem poderia ser? Quem? Oh, meu Deus! Estou ficando louco? Quem me salvará? 10 de julho. Acabo de passar por surpreendentes experiências. A 6 de julho, antes de ir para a cama, coloquei vinho, leite, água, pão e morangos sobre a mesa. Alguém bebeu, eu bebi, toda a água e um pouquinho do leite, mas o vinho, o pão e os morangos não foram tocados. Em 7 de julho, repeti a mesma experiência, com os mesmos resultados, e em 8 de julho não deixei água nem leite, e nada foi tocado. Por fim, 9 de julho, deixei sobre a mesa apenas água e leite, tomando o cuidado de envolver os frascos em guardanapos e amarrar as tampas. Deitei-me. Um sono irresistível se apossou de mim. Acordei, fui até a mesa. Os guardanapos que cobriam os frascos estasvam intactos. Desamarrei as tampas. Toda a água fora bebida, assim como o leite. Curioso!

12 de julho. Devo ter sido levado por minha imaginação exacerbada nos últimos dias, a menos que seja realmente sonâmbulo ou que tenha estado auto-sugestionado. Resolvi viajar para Paris. Ontem, depois de resolver alguns negócios e fazer algumas visitas que me revigoraram a alma, terminei a noite no Théâtre-Français. Estava sendo apresentada uma peça de Alexandre Dumas, filho, e sua imaginação ativa e poderosa completou meu bem estar. Pelos bulevares, voltei ao hotel muito bem-humorado. Pensava, não sem uma ponta de ironia, em meus terrores e conjecturas da semana anterior, porque acreditara que uma criatura invisível vivia debaixo de meu teto. Como nossa mente é fraca, nos assustamos à toa e somos induzidos a conclusões erradas devido a um pequeno fato incompreensível! Em vez de pensar apenas: "Não entendo porque não conheço a causa", imaginamos imediatamente
mistérios terríveis e forças sobrenaturais.

14 de julho. Festa da República. Passeei pelas ruas, entusiasmado com os fogos e as bandeiras, como uma criança. Ainda assim, é tolice ficar alegre em data marcada, obedecendo a um decreto do governo. O populacho é um imbecil rebanho de carneiros, de uma paciência estúpida ou com uma revolta feroz. Digam-lhe: "Divirtam-se", e o povo se diverte. Digam-lhe: "Vão lutar com o vizinho", e o povo vai e luta. Digam-lhe: "Votem pelo imperador", e o povo vota pelo imperador. Então digam-lhe: "Votem pela República", e o povo vota pela República. Os que dirigem o povo também são estúpidos, só que, ao invés de obedecer aos homens, obedecem aos princípios que só podem ser estúpidos, estéreis e falsos, pela simples razão de serem princípios, isto é, ideias consideradas como certas e imutáveis, neste mundo, onde não existe certeza de nada, onde até a luz é uma ilusão, o barulho é uma ilusão, e assim por diante. Ou então não obedecem a princípio algum, são amorais - o que também é estúpido.

16 de julho. Ontem vi algo que me deixou muito preocupado. Jantava em casa de minha prima, Mme. Sable, cujo marido é coronel no 76° Batalhão de Caçadores, em Limoges. Estavam lá duas jovens, uma delas casada com um médico, Dr. Parent, especialista em doenças nervosas e com especial interesse pelas notáveis manifestações causadas pelo hipnotismo e pela sugestão. Contou-nos com alguns detalhes os maravilhosos resultados obtidos por cientistas ingleses e médicos da escola de Nancy, e os fatos que expôs pareceram-me tão estranhos que fiquei completamente incrédulo. Disse ele:
- Estamos prestes a descobrir um dos mais importantes segredos da natureza, isto é, um dos mais importantes segredos nesta Terra, pois certamente existem outros, de outra espécie de importância, lá em cima, nas estrelas. Desde que o homem começou a pensar, desde que conseguiu expressar e anotar os pensamentos, tem-se sentido próximo a um mistério inacessível à sua mente e a seus sentidos incompletos e imperfeitos. Procura, então, suprir essa limitação por meio de explicações e teorias reconfortantes. Enquanto os sentidos e intelecto mantiveram-se em um estágio rudimentar, as aparições dos espíritos invisíveis assumiam formas comuns, embora assustadoras. Daí surgiu a crença popular no sobrenatural, as lendas das almas penadas, fadas, gnomos, fantasmas, posso mesmo dizer, a lenda de Deus, pois nossa concepção do artífice-criador, seja qual for a religião que no-la transmitiu, é certamente a mais vulgar, estúpida e inacreditável invenção que já saiu do cérebro amedrontado dos seres humanos.

Nada é mais verdadeiro do que o dito de Voltaire: "Deus criou o homem à Sua imagem, mas o homem pagou-lhe na mesma moeda". Entretanto - continuou o Dr. Parent -, há cerca de um século, os homens parecem pressentir algo novo. Mesmer e outros conduziram-nos a uma trilha inesperada e, principalmente nos últimos dois ou três anos, conseguimos resultados realmente surpreendentes. Minha prima, também muito incrédula, sorriu, e o Dr. Parent disse-lhe:

- Gostaria que eu tentasse fazê-la dormir, madame?

- Sim, certamente.
Ela sentou-se em uma poltrona, e ele começou a olhá-la fixamente. Comecei a sentir-me pouco à vontade, com o coração acelerado e uma sensação sufocante na garganta. Vi os olhos de Mme. Sable tornarem-se pesados, a boca
crispar-se e o peito arfar. Em 10 minutos estava dormindo.
- Fique atrás dela - disse-me o médico.
Obedeci-o. Pôs um cartão de visitas entre as mãos dela e lhe disse:
- Isto é um espelho. O que vê nele?
Ela respondeu:
- Vejo meu primo.
- O que ele está fazendo?
- Torcendo o bigode.
- E agora?
- Está tirando uma fotografia do bolso.
- Fotografia de quem?
- Dele mesmo.
Era verdade. A fotografia fora-me entregue no hotel aquela noite.
- Como é a foto?
- Ele está em pé, com o chapéu na mão.

Enxergava, pois, naquele cartão, naquele pedaço de papelão branco, como se olhasse através de um espelho. As jovens ficaram assustadas e exclamaram:
- Chega! Já chega!
Mas o médico ordenou a Mme. Sable:
- Levante-se amanhã às oito horas, vá visitar seu primo no hotel e peça-lhe cinco mil francos emprestados, que seu marido está precisando e que exigirá da senhora quando partir para a próxima viagem.

Então o médico acordou-a. Na volta ao hotel, fui meditando sobre essa curiosa sessão. Enchia-me de dúvidas, não quanto à absoluta e sincera boa-fé de minha prima, pois conhecia-a como a uma irmã desde criança, mas quanto a um possível truque da parte do médico. Não teria, talvez, um espelho escondido na mão, mostrando-o à jovem adormecida, ao mesmo tempo que mostrou o cartão? Os mágicos fazem coisas assim. Cheguei ao hotel e fui para a cama. Esta manhã, mais ou menos às oito e meia, o criado de quarto acordou-me e disse:

- Mme. Sable pede para vê-lo imediatamente, monsieur. - vesti-me às pressas e fui recebê-la. Sentou-se um tanto preocupada, de olhos baixos e, sem erguer o véu do chapéu. Disse-me:
- Caro primo, vim pedir-lhe um grande favor.
- Que favor, minha prima?
- Não gostaria de pedir-lhe, mas tenho de fazê-lo. Preciso urgentemente de cinco mil francos.
- O quê? Você?
- Sim, eu - ou melhor, meu marido pediu-me para consegui-los.
Fiquei tão atônito que gaguejei. Perguntava-me se ela não estaria zombando de mim, juntamente com o Dr. Parent, se tudo não seria apenas uma bem ensaiada farsa. Olhando-a atentamente, entretanto, todas as minhas dúvidas desapareceram. Estava trêmula de desgosto, pois essa atitude lhe era penosa, e percebi que tentava conter soluços.Sabia que era muito rica, por isso continuei: 

- Como? Seu marido não tem cinco mil francos à disposição? Vamos, pense. Tem certeza de que ele a encarregou de consegui-los?
Hesitou alguns segundos, como se fizesse grande esforço de memória e respondeu:
- Sim... sim, tenho certeza.
- Ele lhe escreveu?
Hesitou novamente e refletiu. Percebi a tortura de seus pensamentos. Não sabia. Sabia apenas que tinha de conseguir comigo cinco mil francos emprestados para seu marido. Assim, mentiu:
- Sim, escreveu-me.
- Rogo-lhe que me diga quando ele o fez. Não falou sobre isso ontem.
- Recebi a carta hoje pela manhã.
- Pode mostrá-la para mim?
- Não... não... continha assuntos
íntimos... coisas muito pessoais... Queimei-a.
- Então seu marido está endividado?
Hesitou mais uma vez e murmurou:
- Não sei.
Disse-lhe sem cerimônia:
- No momento não posso dispor de cinco mil francos, cara prima.
Deu um grito, como se estivesse sentindo alguma dor. E disse:

- Oh, suplico-lhe, rogo-lhe que os consiga para mim...
Parecia perturbada e juntava as mãos como a implorar-me. Sua voz mudou de tom. Chorava e gaguejava, inquieta e dominada pela ordem irresistível que recebera.
- Por favor, imploro-lhe... se soubesse o que estou sofrendo... preciso do dinheiro hoje.
Fiquei com pena:
- Você terá daqui a pouco, juro.
- Obrigada, obrigada. Agradeço-lhe muito.
- Lembra-se do que aconteceu em sua casa ontem à noite? - continuei.
- Sim.
- Lembra-se de que o Dr. Parent fez você dormir?
- Sim.
- Muito bem então. Mandou que viesse procurar-me esta manhã e pedisse cinco mil francos emprestados. Neste momento, você está obedecendo a essa sugestão.
Refletiu por alguns momentos e respondeu:
- Mas é como Se meu marido precisasse deles...
Durante uma hora tentei convencê-la, sem conseguir. Quando se foi, procurei o médico. Estava de saída, ouviu-me
com um sorriso e disse:
- Acredita, agora?
- Sim, não tenho outra saída.

- Vamos à casa de sua prima.
Ela já estava meio adormecida em uma espreguiçadeira, vencida pelo cansaço. O médico tomou-lhe o pulso, observou-a por algum tempo, com a mão erguida em frente aos olhos dela. Sob a irresistível influência de sua força magnética, fechou os olhos. Quando adormeceu, o médico disse:
- Seu marido não precisa mais dos cinco mil francos. Deve, portanto, esquecer que os pediu emprestado a seu primo e, se ele tocar no assunto, não entenderá de que se trata.
Acordou-a. Peguei a carteira e disse:
- Aqui está o que me pediu esta manhã, cara prima.
Ficou tão surpresa, que não me atrevi a insistir. Contudo, tentei fazê-la lembrar-se do que acontecera. Negou energicamente, achando que me divertia às suas custas e, no fim, quase perdeu a paciência. Pronto! Acabo de chegar e não consegui almoçar, pois essa experiência deixou-me completamente abalado.

19 de julho. As pessoas a quem contei essa aventura riram-se de mim. Não sei mais o que pensar. Diz o sábio: "Pode ser!"

21 de julho. Jantei em Bougival e passei a noite em um baile de barqueiros. Decididamente, tudo depende do local e do ambiente. Seria muita tolice acreditar no sobrenatural quando se está na Île de la Grenouilliére... mas, e no Mont-Saint-Michel?... e na Índia? Somos terrivelmente influenciados pelo que nos rodeia. Na semana que vem, voltarei para casa.

30 de julho. Voltei ontem para casa. Tudo vai bem.

2 de agosto. Nada de novo. O tempo está esplêndido, tenho cuidado de meu jardim, que está belíssimo, lido muito à sombra do plátano, encontrado amigos, e encanta-me sobremaneira olhar o Sena por longos minutos.

4 de agosto. Desavenças entre os criados. Alegam que à noite os copos são quebrados nos armários. O criado acusa o cozinheiro, que acusa a costureira, que acusa os outros dois. Quem é o culpado? Não quero me incomodar com isso, não quero estragar meu bem estar atual.

6 de agosto. Muito estranho. Às duas horas, em pleno sol, passeava entre as roseiras... Quando parei para olhar um géant de bataille, com três rosas esplêndidas, vi a haste de uma das rosas perto de mim inclinar-se, como se uma mão invisível a forçasse a quebrar-se, como se estivesse sendo colhida! Então, a flor ergueu-se, seguindo a curva que a mão teria feito ao levá-la até a boca e permaneceu suspensa no ar, sozinha e imóvel, quase diante de meus olhos. Fui pegá-la, mas nada achei, ela desaparecera! Fiquei com muita raiva de mim mesmo, pois um homem sério e razoável não deveria ter tais alucinações. Mas seria uma alucinação? Voltei-me para olhar a haste e encontrei-a imediatamente, na roseira, quebrada de pouco, entre duas rosas que continuavam no galho. Voltei para casa, bastante perturbado, mas procurei abstrair e não pensar mais nisso.

7 de agosto. Dormi tranquilamente. Vi na cozinha outra garrafa que fora esvaziada, mas isso não perturbou meu sono. No dia seguinte, fui passear à beira do rio. O Sol brilhava intensamente sobre o rio e tornava a Terra agradável, enchendo-me de amor pela vida, pelas andorinhas cuja agilidade sempre encanta meus olhos, pelas plantas à beira do rio, de cujas folhas o farfalhar é um prazer aos ouvidos. Aos poucos, entretanto, comecei a sentir uma indefinível e ligeira sensação de mal-estar. Parecia que uma força desconhecida estava me entorpecendo e detendo, impedindo-me de seguir adiante. Senti um forte impulso de voltar, que concluí tratar-se de um pressentimento de algum acontecimento ruim; estava certo de que uma má notícia estava à minha espera, talvez uma carta ou telegrama. Então voltei, contra a minha vontade. Porém não havia nada, e fiquei surpreso e inquieto como se tivesse tido outra visão fantástica. Mais uma vez me veio à mente que talvez estivesse ficando louco. Mas procurei afastar essa ideia com todas as minhas forças.

8 de agosto. Ontem passei uma noite horrível. O ser não se mostra mais, porém, sinto-o perto de mim, vigiando-me, olhando-me, penetrando-me, dominando-me, e é mais temível quando se oculta dessa forma do que se manifestasse sua presença constante e invisível através de fenômenos sobrenaturais. Entretanto, consegui dormir.

1 de agosto. Nada, mas estou com um pouco de medo.

10 de agosto. Nada. O que acontecerá amanhã?

11 de agosto. Nada ainda. Não consigo mais ficar em casa com este medo pairando sobre mim e estes pensamentos na cabeça. Vou embora.

12 de agosto. 10 horas da noite. O dia todo tentei partir e não consegui. Gostaria de realizar este simples e fácil ato de liberdade - sair -, entrar em meu carro e partir para Rouen... e não consigo. Por quê?!!

13 de agosto. Quando somos atacados por certas doenças, todas as "molas" de nosso corpo parecem estar quebradas, todas as nossas energias destruídas, todos os nossos músculos enfraquecidos, nossa mente frágil. Estou tendo essas sensações de modo estranho e angustioso. Não tenho mais força, coragem, autocontrole, e agora nem mesmo o poder de ação. Estou ficando sem vontade de nada, mas alguém a tem por mim e eu lhe obedeço.

14 de agosto. Estou perdido. Alguém possui minha alma e a domina. Alguém ordena todos os meus atos, todos os meus movimentos, todos os meus pensamentos. Não sou mais nada, exceto espectador escravizado e amedrontado de tudo o que faço. Quero sair, não posso. Ele não quer, e assim permaneço, trêmulo e perplexo, na poltrona onde ele me mantém sentado. Desejo apenas levantar-me e me animar, mas não posso! Estou preso à cadeira, e esta adere ao chão de tal maneira que não existe força capaz de mover-nos.De repente, sinto que devo, preciso ir ao fundo do quintal colher morangos e comê-los, e lá vou eu. Colho os morangos e como-os. Meu Deus! Meus Deus! Deus existe? Se existe, libertai-me! Salvai-me! Socorrei-me! Perdão! Piedade! Misericórdia! Salvai-me! Quanto sofrimento! Que tormento! Que horror!

15 de agosto. Então era desse modo que minha pobre prima se encontrava, e era controlada, quando veio pedir-me os cinco mil francos emprestados. Estava sob o poder de uma estranha vontade que entrara dentro dela, como outra alma, como outra alma parasita e dominadora. Será que o mundo está para acabar? Mas quem é ele, este ser invisível que me governa? Esta criatura irreconhecível, indescritível, este pirata de minha alma? Existem, então, seres invisíveis! Por que não se manifestaram desde o começo do mundo, precisamente como fazem comigo? Nunca li nada parecido com o que acontece em minha vida. Oh, se pudesse deixá-la, se pudesse ir embora, fugir e nunca mais voltar! Estaria salvo, mas não posso.

16 de agosto. Hoje consegui escapar por duas horas, como um prisioneiro que, por acaso, encontra a porta da masmorra aberta. De repente, senti que estava livre e que ele estava muito longe; assim, dei ordens para atrelar os cavalos o mais depressa possível e partir para Rouen. Como é agradável conseguir dizer a um homem que nos obedece:
- Vá... a Rouen!
Mandei parar em frente à biblioteca e pedi que me emprestassem o tratado do Dr. Hermann Herestauss sobre os habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno. Ao voltar para o coche, pretendia dizer: "Para a estação!", mas em vez disso gritei, muito alto e incisivamente:
- Para casa! - e caí para trás, na almofada do carro, tomado de angústia. Ele voltara a me encontrar e retomara a posse de mim.

17 de agosto. Ah, que noite! Que noite! E contudo parece-me que devia alegrar-me. Li até a uma da manhã. Herestauss, doutor em Filosofia e Teogonia, escreveu a história da manifestação de todos esses seres invisíveis que pairam em volta dos homens ou com quem os homens sonham. Descreve sua origem, domínio, poder, mas nenhum se assemelha ao que me assedia. Pode-se dizer que, desde que começou a pensar, o homem pressente um novo ser, mais forte, seu sucessor neste novo mundo e que, sentindo sua presença e não conseguindo prever a natureza desse mestre, criou toda uma raça de seres ocultos, de vagos fantasmas, nascidos do medo. Depois de ler, sentei-me à janela aberta, a fim de refrescar a fronte e os pensamentos, no ar calmo da noite agradável e quente. Como teria apreciado semelhante noite em outros tempos! Uma bela Lua cercada de estrelas que lançavam sua luz no céu escuro. Quem habita esses mundos? Que formas, que seres vivos, que animais existem lá em cima? O que sabem os pensadores naqueles mundos distantes que não sabemos? O que podem fazer, e nós não? O que vêem que não conhecemos? Será que um deles, algum dia, atravessando o espaço, aparecerá na Terra para conquistá-la, exatamente como os escandinavos cruzaram o mar a fim de conquistar nações mais fracas do que eles? Somos tão fracos, tão indefesos, tão ignorantes, tão pequenos, nós que vivemos nesta partícula de lama que gira em uma gota de água! Adormeci assim, sonhando no fresco ar da noite, e depois de dormir, cerca de três quartos de hora abri os olhos sem me mexer, acordado por não sei que confusa e estranha sensação. A princípio não vi nada, mas de repente

tive a impressão de que uma página do livro que ficara aberto sobre a mesa virou-se sozinha. Nenhuma aragem passara pela janela, por isso, surpreso, esperei. Depois de uns quatro minutos, eu vi outra página levantar-se e cair sobre as outras, como se um dedo a tivesse virado. A poltrona estava vazia, parecia vazia, mas sabia que ele estava lá. Sentado em meu lugar e lendo. Com um pulo, o pulo furioso de um animal selvagem enraivecido que salta sobre o domador, atravessei a sala para agarrá-lo, estrangulá-lo, matá-lo! Porém, antes que pudesse alcançá-lo, a cadeira virou-se como se alguém tivesse fugido de mim... a mesa balançou, a lâmpada caiu e se apagou e a janela fechou-se, como se um ladrão tivesse sido surpreendido e fugido noite afora, fechando-a atrás de si. Então ele fugira. Tivera medo, medo de mim! Mas... mas... amanhã... ou mais tarde... algum dia... conseguirei agarrá-lo e esmagá-lo contra o chão! Às vezes os cães não mordem e estraçalham o dono?

18 de agosto. Estive pensando o dia todo. Sim, vou obedecer-lhe, seguir seus impulsos, realizar seus desejos, mostrar-me humilde, submisso, covarde. Ele é o mais forte, mas há de chegar a hora...

19 de agosto. Eu sei... eu sei... eu sei tudo! Acabei de ler o seguinte, na Revue du Monde Scientifique: "Curiosa notícia chega-nos de Oxford, Inglaterra. Loucura, uma epidemia de loucura, comparável à pestes contagiosas que atacam populações inteiras, está, neste momento, grassando na província de Salisbury, também Inglaterra. Os habitantes, aterrorizados, abandonam suas casas, dizendo que estão sendo perseguidos, possuídos, dominados como gado humano por seres invisíveis, mas tangíveis, uma espécie de vampiro, que se alimenta da vida deles enquanto estão dormindo, e que, além disso, bebe água e leite, sem aparentemente tocar nenhum outro alimento. "O professor Phillip Andrews, acompanhado por vários médicos, foi a Salisbury, a fim de estudar a origem e as manifestações dessa surpreendente loucura, no local, e propor ao imperador as medidas que lhe pareçam mais cabíveis para fazer com que a população recupere a razão. "Ah! ah! lembro-me agora daquele belo navio inglês de três mastros que passou em frente às minhas janelas, subindo o Sena no dia 8 de maio passado! Achei que parecia tão formoso, tão branco e brilhante! Aquele Ente estava a bordo, vindo de lá, onde sua raça se originou. E me viu! Viu minha casa, também branca, e saltou do navio para terra. Oh, céu misericordioso! Agora sei, posso adivinhar. O reino do homem acabou, e ele chegou. Ele, que era temido pelo homem primitivo, ele, que padres preocupados exorcizavam, que feiticeiras evocavam em noites escuras, sem tê-lo visto aparecer, a quem a imaginação dos senhores provisórios do mundo

emprestavam todas as monstruosas ou graciosas formas de gnomos, espíritos, gênios, fadas e almas familiares. Depois dos conceitos imprecisos baseados no medo primitivo, homens mais sensíveis anteviram-no mais claramente. Mesmer o pressentiu, e, há dez anos, médicos descobriram, com precisão, a natureza de sua força, antes mesmo que ele a exercesse. Divertiram-se com essa nova arma do Senhor, o domínio de uma vontade misteriosa sobre a alma humana que se tornara escrava. Chamaram-no de magnetismo, hipnotismo, sugestão... sei lá! Vejo-os divertindo-se, como crianças malignas, com essa força terrível! Ai de nós! Ai dos homens! Ele chegou, o... o... como se chama... o... Imagino que está gritando seu nome e não consigo ouvi-lo... o... sim... está gritando... estou ouvindo... Não consigo... Ele o repete... o... Chemosh... ou... o Chemosh... ele chegou! Ah! O abutre devorou a pomba, o lobo devorou o cordeiro, o leão devorou o búfalo de chifres pontiagudos. O homem matou o leão com a espada. Mas Chemosh fará do homem o que fizemos do cavalo e do boi: objeto, escravo e alimento, só porque é sua vontade. Ai de nós! Contudo, às vezes, o animal revolta-se e mata o homem que o subjugou. Eu também gostaria de... serei capaz de... mas preciso conhecê-lo, tocá-lo, vê-lo! Os cientistas afirmam que os olhos dos animais, sendo diferentes dos nossos, não distinguem os objetos da mesma forma que nós. E meus olhos não conseguem distinguir esse recém-chegado que me oprime. Por quê? Agora me lembro das palavras do monge do Mont-Saint-Michel: "Será que

vemos a centésima milionésima parte do que existe? Veja, lá está o vento, a maior força da natureza, que derruba homens e edifícios, desenraiza árvores, faz o mar erguer-se como montanhas de água, destrói penhascos e joga grandes navios contra as ondas. O vento que mata, que assobia, que suspira, que ruge... já o viu? Consegue vê-lo? Contudo, ele existe". E continuei a pensar: "Meus olhos são tão fracos, tão imperfeitos, que nem mesmo distinguem corpos sólidos, se estes forem transparentes como o vidro! Se não houver um papel prateado atrás de um vidro em meu caminho, colidirei com ele, da mesma forma que um pássaro, voando para dentro de uma sala, bate a cabeça contra a vidraça". Existem mil coisas que enganam o homem e o induzem ao erro. Por que haveria de ser surpreendente o fato de não conseguir perceber um corpo desconhecido que a luz consegue atravessar? Um novo ser! Por que não? Com certeza estava destinado a vir! Por que deveríamos ser os últimos? Não o distinguimos mais do que todos os outros criados antes de nós! Isso acontece porque sua natureza é mais perfeita, tem o corpo mais apurado e mais bem acabado que o nosso, tão fraco, de construção tão desajeitada, atravancado de órgãos que estão sempre cansados, sempre tensos como um mecanismo muito complicado, que vive como planta e como animal, nutrindo-se com dificuldade de ar, ervas e carne, máquina animal vitima de doenças, má-formação, decadência; arquejante, mal-

regulado, simples e extravagante, originalmente malfeito, obra ao mesmo tempo grosseira e delicada, esboço irregular de uma criatura que poderia tornar-se inteligente e grandiosa. Somos apenas alguns, tão poucos neste mundo, da ostra ao homem. Por que não poderîa haver mais um, uma vez passada a época que separa as sucessivas aparições de todas as espécies diferentes? Por que não mais um? Por que não, também, outras árvores com flores imensas e esplêndidas, perfumando regiões inteiras? Por que não outros elementos além do fogo, ar, terra e água? Existem quatro, só quatro, amas-secas de seres diferentes! Que pena! Por que não existem 40, 400, quatro mil? Como tudo é pobre, mesquinho e miserável! Produzido de má vontade, construído irregularmente, inabilmente feito! Ah, o elefante e o hipopótamo, que graça! E o camelo, que elegância! Mas a borboleta, dirão, uma flor voadora? Sonho com uma tão grande como cem universos, com asas cuja forma, beleza, e movimentos não consigo nem mesmo exprimir. Porém a vejo... esvoaça de uma estrela a outra, refrescando-as e perfumando-as com a aragem leve e harmoniosa de seu vôo! E as pessoas lá em cima olham-na quando passa em um êxtase de prazer! O que está acontecendo comigo? É ele, Chemosh, que me persegue e que me faz pensar essas tolices! Está dentro de mim, está se transformando em minha alma. Pretendo matá-lo!

19 de agosto. Vou matá-lo. Eu o vi! Ontem, sentei-me à mesa e fingi escrever com bastante atenção. Sabia muito bem que viria rondar-me, bem perto de mim, tão perto que, talvez, conseguisse, tocá-lo, agarrá-lo. E então... então eu conseguiria a força do desespero. Teria as mãos, os joelhos, o peito, a fronte, os dentes para estrangulá-lo, esmagá-lo, mordê-lo, fazê-lo em pedaços. E o aguardava com todos os sentidos alertas. Acendera as duas lâmpadas e as oito velas de cera sobre a lareira, como se com toda essa luz pudesse descobri-lo.À minha frente, estava a cama, a velha cama de colunas de carvalho; à direita, a lareira; à esquerda, a porta, fechada cuidadosamente, depois que a deixei aberta algum tempo, a fim de atraí-lo; atrás de mim, estava o guarda-roupa, muito alto, com o espelho diante do qual fazia a barba e me vestia todos os dias e no qual costumava ver-me de relance, da cabeça aos pés, toda vez que passava diante dele. Fingia estar escrevendo a fim de enganá-lo, pois ele também me vigiava e, de repente, senti... tinha certeza de que estava lendo por cima de meu ombro, que estava lá, roçando minha orelha. Levantei-me com as mãos estendidas e virei-me tão depressa que quase caí. Sem me dar conta, olhei para o espelho. Estava claro como se fosse o meio-dia, mas não conseguia ver meu reflexo no espelho! Estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Só que minha imagem não estava refletida nele... Examinei o grande e claro espelho, de cima a baixo, olhei-o com olhos vacilantes. Não ousei aproximar-me, não me arrisquei a fazer um movimento sequer, sentindo que ele estava

ali, mas que novamente me escapara, ele cujo corpo imperceptível absorvera meu reflexo. E então, subitamente, comecei a ver-me através de uma névoa no fundo do espelho, uma névoa que parecia um lençol de água. Parecia-me que a água escorria mais clara a todo momento. Era como o fim de um eclipse. O que quer que ocultasse minha imagem não parecia possuir contornos definidos, mas uma espécie de transparência opaca que ia clareando aos poucos. Afinal, consegui distinguir meu reflexo completamente, como acontece todos os dias quando me olho no espelho.Eu o vira! O horror dessa visão ficou comigo e, mesmo agora, faz-me tremer.

20 de agosto. Como poderia matá-lo, se não consegui agarrá-lo? Veneno? Mas ele me veria misturá-lo à água... Então... então...

21 de agosto. Chamei um ferreiro de Rouen e encomendei grades de ferro para meu quarto, iguais às que alguns hotéis de Paris têm no andar térreo, para impedir a entrada de ladrões, e ele também vai fazer-me uma porta de ferro. Estou parecendo covarde, mas não me importo!

10 de setembro. Rouen, Hotel Continental. Está feito... está feito... mas será que está morto? O que vi deixou-me a mente completamente abalada.Bem, ontem, depois que o serralheiro colocou as grades e a porta de ferro, deixei tudo aberto até a meia-noite, embora estivesse esfriando. De repente, senti que ele estava lá. Uma alegria, uma louca alegria apossou-se de mim. Levantei-me silenciosamente e andei algum tempo de um lado para outro, para que ele não suspeitasse de nada. Tirei as botas e calcei os chinelos despreocupadamente, tranquei as grades de ferro com um cadeado, fui até a porta, tranquei-a rapidamente e guardei as chaves no bolso. Percebi de súbito que ele se movia nervosamente à minha volta, que, por sua vez, estava amedrontado e ordenava-me que o deixasse sair. Quase lhe obedeci. Em vez disso, entretanto, com as costas contra a porta, abri-a apenas o suficiente para poder sair de costas e, como sou muito alto toquei a esquadria com a cabeça. Estava certo de que ele não tinha conseguido escapar e deixei-o fechado sozinho, completamente sozinho. Que felicidade! Conseguira prendê-lo. Então corri para baixo, para a sala de visitas que ficava embaixo do meu quarto. Peguei os dois lampiões e despejei todo o querosene no tapete, na mobília, em toda parte. Toquei fogo e fugi, depois de trancar cuidadosamente a porta. Escondi-me no fundo do quintal, em uma moita de louros. Como parecia demorar! Tudo estava escuro, silencioso, imóvel, sem a mais leve

brisa, sem uma estrela, somente camadas de nuvens, que quase não se podia ver. Fiquei esperando, olhando para a casa. Como demorava! Começava a pensar que o fogo se apagara sozinho, ou que ele o extinguira, quando uma das janelas do andar térreo cedeu sob a violência das chamas e uma longa, suave, acariciante e rubra língua de fogo subiu pela parede branca e envolveu-a até o telhado. O clarão atingiu as árvores, os galhos e as folhas, e um arrepio de medo também os invadiu! Os pássaros acordaram, um cachorro começou a uivar, e pareceu-me que o dia estava nascendo! Quase imediatamente, duas outras janelas se arrebentaram e vi que toda a parte de baixo da casa era apenas uma fornalha incandescente. Um grito, horrível, estridente, de partir o coração, um grito de mulher, soou dentro da noite, e duas janelas do sótão se abriram! Esquecera-me dos criados! Vi os rostos apavorados e os braços agitando-se freneticamente. Tomado de pavor, comecei a correr para a cidade, gritando:

- Socorro! Socorro! Fogo! Fogo! - encontrei algumas pessoas que já vinham correndo e voltei com elas. Porém, nesse momento a casa não era mais que uma horrível e imponente pira funerária, monstruosa pira funerária que iluminava tudo, pira funerária onde homens ardiam, e ele também estava sendo queimado. Ele, ele, meu prisioneiro, o novo Ser, o novo Senhor, o Chemosh! Morto. Morto? Talvez?... Seu corpo? Não seria seu corpo, transparente, indestrutível pelos meios que conseguiam matar os nossos? E se ele não estivesse morto?... Talvez só o tempo tenha poder sobre esse ser invisível e terrível. Qual a razão desse corpo transparente e irreconhecível, esse corpo pertencente a um espírito, se também tem de temer doenças, fraquezas e ruína prematura? Ruína prematura? Todo o terror humano tem aí sua origem! Depois do homem, o Chemosh. Depois daquele que pode morrer todo dia, a toda hora, a todo momento, de qualquer acidente, veio o que morreria apenas na hora, no dia e no minuto apropriado, porque tocara os limites de sua própria existência! Não... não... sem dúvida... não está morto... Então... então... acho que terei de me matar!... 

Me matar?!! Nããããão!!!!E, com os pensamentos girando desconexos e vertiginosamente em sua cabeça, saiu correndo transtornado, gritando, pelas ruas de Le Havre, sem destino e sem objetivo. Sem ter a menor noção de por onde passava, para onde ia, foi até muito longe, no subúrbio da cidade, até que, após cerca de três horas, bastante cansado, lá se sentou, em algum lugar que não era capaz de definir. Passados uns 20 minutos, foi abordado com extrema gentileza por uma jovem de uns 22 anos, de boa aparência, bem vestida, mas de forma discreta e sem luxo:
- Boa noite! O senhor parece cansado... vamos até a...
Ele interrompeu, com voz vacilante e visivelmente confuso:
- A... se-se-nhorita po-po-po-de me dizer... OH DEUS!!! Mi-mi-se-se-ricórdia... O que-que está acon-con-tecendo, moça... O que-que é essa né-névoa ge-ge-lada em volta de mim... Oh Senhor, sal-sal-vai-me...
E ela, com voz muito suave e tranquila, procurando acalmá-lo e transmitir-lhe segurança:
- Fique tranquilo, senhor... relaxe... está tudo bem... está tudo bem... - e passou a mão por seus ombros, por sua cabeça, suave e calorosamente.
Ele começou a chorar copiosamente, seu corpo inteiro sacudia em soluços. Até que, alguns minutos depois, conseguiu se acalmar um pouco e dizer, transtornado:

- Moça, onde é que eu estou? POR DEUS, o que está acontecendo? Você, que parece um anjo de Deus, será que pode me ajudar? Ah... o fogo... os corvos sobrevoando os pombos mortos... o tigre gigante espreitando o coelho... as crianças malévolas... CHEMOSH... todos atrás de mim... CHEMOSH... NÃÃÃÃÃÃO!!!!!! Oh Senhor, tende compaixão! Perdoai-me!!! CHEMOSH... AAAAAAAAAHHHHHH... Socorro, Deus de todas as coisas na Terra e além dela... Não posso fugir... não posso fugir... Não há lugar em parte alguma deste mundo para mim, não há descanso... não tenho saída, estou perdido, amaldiçoado... Chemosh quer a minha alma... ele vai me atormentar por toda a eternidade... VEJA, MOÇA, ELE ESTÃ ALI... NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO!!!!! Não consigo correr, não posso fugir... DEEEEEUS, ouvi-me, por piedade!!! Eu não suporto mais... não suporto... que desgraça... sou o homem mais infeliz entre todos... Por quê? Por quê???? - e sua voz ficou embargada, estava prestes a chorar.
A moça estava chocada, mas, bondosa, penalizada, falou com a voz mais meiga e mansa desse mundo:
- Calma... Calma... Calma... Não há ninguém aqui, eu lhe juro por Deus. Não tenha medo de nada.
- NÃO, MOÇA, AJUDE-ME!!! CHEMOSH ESTÁ AQUI... VEJA!!! VÁ EMBORA!!! DEIXE-ME!!!! - e começou a chorar novamente, desesperado, sentido e soluçante como uma criança. A moça então, ainda suave, mas firme e decidida, pegou-lhe a mão, passou o braço sobre seu ombro e disse:

- Fique tranquilo, eu lhe garanto, eu lhe juro, que está tudo bem. Agora venha, vamos comigo até minha casa, o senhor deve estar com frio, assim com tão pouca roupa.
(Na verdade ele estava completamente nu. A moça não esperou mais resposta e levou-o até sua casa.)



Punhal


A  BIOGRAFIA

Após a morte de Ashton Doyne, o jovem escritor George Withermore foi procurado pela viúva, Rebecca Doyne, para que escrevesse uma biografia sobre ele. Sua escolha por Withermore deveu-se à grande amizade e afinidades entre os dois homens. E ela pedia uma certa urgência em sua publicação. Evidente que o jovem teria de tratar também sobre o relacionamento do casal, e sobre isso, a pobre mulher lhe contara, não só para o livro como também como desabafo, sobre as muitas qualidades do esposo, sobre a grande falta que ele lhe fazia. Withermore era um iniciado em grau avançado, mas não pressentiu que seria ele a pessoa em cujas mãos ela colocaria o material para o livro. Esse material — diários, cartas, memorandos, anotações, documentos de muitos tipos — era propriedade da viúva, e ela detinha todo poder sobre ele, assim como também sobre todo o resto de sua parte na herança. Eles teriam muito sobre o que conversar para a realização da obra. Marcaram uma hora para os entendimentos iniciais, na casa dela. Chegando lá, Whitermore não pôde deixar de observar, mais uma vez, que ela que despertava impressões dúbias; era reservada demais (não por timidez, mas por opção), não fazia questão de ser agradável, mas havia algo na sua presença firme, segura, inteligente e polida que lhe causava admiração e respeito. Causou um certo alarme a Withermore, de início, perceber que ela desejava algo volumoso. Ela falava em “volumes” — mas ele pensava em algo menos exagerado. “Pensei imediatamente em você, como ele certamente teria feito”, - ela dissera, quase no momento em que surgiu diante dele, em seus trajes de luto — com seus cabelos e olhos negros, seu leque e luvas negras, sua desolada, trágica, mas impressionante e elegante presença. “Dentre todos, você era de quem ele mais gostava". 

Subiram juntos, sem demora, ao grande escritório vazio de Doyne, que ficava na parte posterior da casa e dava para um jardim de inverno — um belo e inspirador cenário. Tratava-se de um local de muito bom gosto e de alguém bastante abastado. “Você pode perfeitamente trabalhar aqui, se quiser”, disse a sra. Doyne; “terá este lugar somente para si. Servirá perfeitamente para sua tranquilidade e privacidade, não acha?” Maravilhado, ele olhava à sua volta. A presença de seu amigo desaparecido ainda pairava no lugar; tudo ali fizera parte da vida dele. Por hora, isso tudo era excessivo para Withermore — uma honra e uma atenção grandes demais. Memórias ainda recentes retornaram, e fizeram seu olhos se encherem de lágrimas. Ao ver suas lágrimas, também as da sra. Doyne marejaram-lhe os olhos, e ambos, por um instante, apenas se olharam. E, após um momento, Whitermore disse, com a viva aprovação da mulher: “É aqui que estamos com ele”. O jovem começou a vir tão logo pôde, e já no primeiro dia, no encantador silêncio da mansão, uma certa consciência mais vívida o invadiu. Ele atravessou a sala e subiu as escadas (cruzando em seu caminho com alguns criados obedientemente mudos), entreviu, pelo vão de uma porta semi-aberta, os trajes régios de luto da sra. Doyne e foi ter rapidamente com ela, mais para avisar de sua chegada. A expressão dela ainda era trágica. Em poucas palavras, Whitermore expressou grande satisfação pelo início do trabalho. Então dirigiu-se ao escritório, abriu a porta ricamente entalhada, fechou-se lá durante três ou quatro horas. No primeiro dia mesmo, tomou consciência, meio perturbado, de que ficara, na verdade, profundamente impressionado pela expectativa,

pelo privilégio e pela delícia dessa sensação. Ele não refletira — agora percebia-o —, não ponderara claramente sobre a questão do livro — acerca do qual havia muito a pensar; simplesmente deixara que seu afeto e admiração — para não falar de seu orgulho gratificado — acedessem plenamente à tentação que a sra. Doyne lhe ofecera. Como saber, sem maiores reflexões, se o livro era, de um modo geral, desejável? Que justificativa jamais recebera ele do próprio Ashton Doyne para uma aproximação tão direta e, de certo modo, tão informal? Respeitável era a arte da biografia, mas havia vidas e vidas, havia temas e temas. Ele recordava-se vagamente de palavras há muito ditas casualmente por Doyne com relação a obras literárias, indicando um juízo exigente e perfeccionista. E contudo, por outro lado, como deixaria ele, George Withermore, de agarrar-se à oportunidade de passar seu inverno num convívio tão interessante? Fora simplesmente fantástico ter essa oportunidade — essa era a verdade. E não devido ao prazer de escrever tal biografia, ou aos termos muito satisfatórios dos editores, etc., mas sim pelo próprio Doyne, sua companhia, seu contato, sua presença, a possibilidade de um relacionamento mais íntimo do que houvera em vida. Era estranho que, nesse caso, fosse a morte a possuidora de menos mistérios e segredos! No primeiro dia em que o jovem ficou só no aposento, pareceu-lhe que seu mestre e ele estavam realmente juntos pela primeira vez. A sra. Doyne, na maior parte das vezes, deixava-o propositadamente só, mas em duas ou três ocasiões surgira para verificar se ele não precisava

de nada, e ele tivera a oportunidade de agradecer-lhe o discernimento e o zelo com que ela lhe oferecera o trabalho. Ela própria examinara parte do material e já conseguira reunir um bom número de cartas; colocara nas mãos dele, além disso, todas as chaves de gavetas e armários e lhe dera informações úteis sobre os lugares prováveis de diferentes assuntos. Quer seu marido confiara nela ou não, ela, ao menos — isso estava claro — confiava no amigo de seu marido. Todavia, tomou conta de Withermore a impressão de que, a despeito de todas essas atenções, ela ainda não estava inteiramente tranquila e de que uma certa ansiedade acompanhava sua confiança. Embora o tivesse cercado de consideração, ela ao mesmo tempo o observava: ele a percebia, não só com seus olhos como também por um sexto sentido extremamente sutil. Às vezes sentia-a pairar, no silêncio, no alto da escadaria e no outro lado das portas, a inferir-se do farfalhar de suas saias. Certa vez, quando, à mesa de seu amigo, ele estava absorto na correspondência, de repente assustou-se e se virou, com a impressão de que havia alguém atrás de si. Rebecca Doyne abrira silenciosamente a porta e entrara. Deu-lhe um sorriso forçado quando ele se pôs em pé de um salto. “Espero”, disse ela, “não tê-lo assustado”. “Só um pouco — eu estava tão absorto... Foi como se, por um instante”, o jovem explicou, “fosse ele próprio.” Rebecca perguntou: “Ashton? Oh, claro...” 

Isso o espantou: “Você também sente a presença dele?”

Ela deliberadamente demorou alguns segundos para responder, olhou em volta da sala, como se para penetrar em seus cantos mais escuros. Tinha ela um modo de levantar o leque negro ao nível do nariz, cobrindo assim a parte inferior do rosto, que tornava seus olhos um tanto duros e ao mesmo tempo vagos e ambíguos. Então disse: 
“Às vezes...”
“Aqui”, continuou Withermore, “é como se ele pudesse entrar a qualquer momento. Como disse, foi por isso que me assustei há pouco. Faz tão pouco tempo que ele se foi... é como se tivesse sido ontem. Sento-me em sua cadeira, folheio seus livros, uso suas penas, atiço seu fogo, exatamente como se, sabendo que ele retornaria agora de uma caminhada, eu tivesse subido até aqui, satisfeito, a aguardá-lo. É delicioso — mas estranho.” Rebecca, ainda com seu leque levantado, ouvia com interesse. E perguntou: “Isso o preocupa?”
Ele: “Não; agrada-me.”
Ela novamente deixou passar alguns segundos antes de responder: “Você já sentiu como se ele estivesse... ã... pessoalmente na sala?”
Ele: “Bem, como disse agora há pouco”, riu, “ao ouvi-la atrás de mim pareceu-me senti-lo. E Rebecca:

"Afinal, não é exatamente o que desejamos? Tê-lo conosco?”

Ele estava cada vez melhor, como descobriu em seguida, surpreso, pois à medida que começou a envolver-se no seu trabalho, assim lhe parecia, aproximou-se ainda mais da ideia da presença pessoal de Doyne. Desde que essa fantasia começara a envolvê-lo, ele a saudava, chamava-a, estimulava-a, até mesmo lembrava-se dela com prazer, ansiando durante todo o dia para senti-la renovar-se no próximo dia de trabalho e esperando por esse dia,  exatamente como um casal de amantes aguardaria a hora de seu encontro. Os acasos mais fortuitos animavam-no e confirmavam-no, e ao fim de três ou quatro semanas ele decididamente terminara por vê-la como a consagração de seu empreendimento. Não era ela a resposta ao que Doyne teria pensado do que eles estavam fazendo? O que eles estavam fazendo era o que ele desejava que fosse feito, e eles podiam ir em frente, passo a passo, sem vacilações ou dúvidas. Com efeito, havia momentos em que Withermore regozijava-se ao sentir essa certeza: por vezes, profundamente mergulhado em alguns dos segredos do falecido, era particularmente agradável poder crer que Doyne desejava que ele os soubesse. Ele estava aprendendo muitas coisas que não imaginara, abrindo muitas cortinas, forçando muitas portas, desvendando muitos enigmas, percorrendo os bastidores de quase tudo. Foi em uma dessas mudanças bruscas de direção das perambulações mais obscuras pelos bastidores que ele realmente, de súbito, sentia-se mais fortemente, de um modo perceptível, íntimo, face a face com seu amigo; de tal modo que ele dificilmente

poderia dizer, naquele instante, se seu encontro ocorrera no corredor estreito e comprimido do passado, ou agora, no lugar que ele ocupava. Fora em 1867, ou apenas agora, do outro lado da mesa? Felizmente, de qualquer modo, até mesmo à luz mais vulgar que a vida pública poderia lançar, haveria o acontecimento magnífico do lançamento da biografia, do modo como Doyne estava “se mostrando”. Ele estava se mostrando maravilhosamente bem — melhor ainda do que Withermore poderia ter imaginado. Todavia, durante todo o tempo, igualmente, como ele poderia descrever a alguém o estado especial de sua própria consciência? Não era algo de que se pudesse falar. Havia momentos, por exemplo, em que, ao inclinar-se sobre seus papéis, a respiração leve do anfitrião morto estava tão nitidamente em seus cabelos quanto seus próprios cotovelos na mesa diante de si. Em outros momentos, pudesse ele levantar os olhos, pensava que, do outro lado da mesa, veria seu companheiro tão vividamente quanto a luz sombreada da lâmpada lhe mostrava sua página. Por que ele não podia levantar os olhos? Porque a situação seguia regras — como era natural — de profundas sutilezas e delicados receios, por temor de um progresso demasiado súbito ou demasiado descortês. O que pairava no ar com maior intensidade era que, se Doyne estava lá, não era tanto por si mesmo quanto pelo jovem sacerdote em seu altar. O falecido hesitava e protelava, ia e vinha e, em meio aos livros e papéis, movia-se quase como um silencioso, discreto bibliotecário, a executar certas tarefas, a oferecer auxílios

discretos. No entanto, nesses movimentos de Doyne, ele às vezes vagueava em buscas ora definidas, ora vagas; e mais de uma vez, descendo um livro de uma estante e nela encontrando marcas do lápis de Doyne, Withermore sentira-se entre estimulado e confuso, ouvira documentos sobre a mesa atrás de si suavemente moverem-se e agitarem-se, encontrara alguma carta que pusera em lugar inadequado ser colocada novamente no lugar correto, uma miscelânea desfeita ao abrir-se um velho periódico reposta na data exata que ele desejava. Como lhe fora possível, certa vez, dirigir-se a uma caixa dentro de uma gaveta, em meio a cinquenta receptáculos, e organizá-la inteira, mesmo que Withermore, numa bela previsão, a tivesse balançado, para lhe atrair a atenção? Havia momentos e períodos nos quais, caso se pudesse realmente ter olhado, ver-se-ia alguém em pé, ao lado da lareira, ligeiramente afastado e profundamente atento — alguém a fitar outro com um olhar um pouco mais duro do que na vida real. Que essa relação auspiciosa de fato existira, permanecera durante duas ou três semanas, estava suficientemente provado. Porém, a partir de certo momento, o jovem começou a ficar angustiado ao perceber que, por algum motivo, desde um certo dia, a relação de ambos começou a se desfazer. O sinal disso foi uma percepção abrupta, atônita — quando ele perdera misteriosamente uma página maravilhosa não publicada, de que algo provocava desgosto em Doyne. Se

os dois homens haviam, desde o início, estado juntos em um proveitoso trabalho conjunto, poucos dias após a primeira vez em que Withermore desconfiara do amigo, estranhamentepassou o mestre deixou de se mostrar, de colaborar. Foi isso que ocorreu, ele disse para si. Durante cinco noites ele lutou. Sempre longe de sua mesa, caminhando a esmo pela sala, consultando suas referências e logo depois deixando-as de lado, olhando através da janela, atiçando o fogo, com estranhos pensamentos, e buscando sinais e sons, que inutilmente desejava e conjurava, ele então concluiu que estava, ao menos naquele momento, desamparado. Mas o extraordinário foi tornar-se esse fato motivo não somente de tristeza por não sentir a presença de Doyne, mas também de profunda inquietação. De certo modo, era mais estranho que ele não estivesse lá do que fôra sua presença constante — na verdade, tão estranho, por fim, que os nervos de Withermore acabaram por ser afetados. Eles haviam se afeiçoado e se acostumado bastante complacentemente a uma situação que, apesar de parecer-lhes natural, era de uma ordem inexplicável. E agora, aparentemente com alguma animosidade de Doyne, retornavam ao normal, substituindo o incomum pelo natural. E Whitermore estava bastante descontrolado quando, finalmente, uma noite, após resistir por uma ou duas horas, saiu intempestivamente da sala. Tornara-se agora, pela primeira vez, impossível para ele

permanecer lá. A esmo, ofegando um pouco e muito confuso, ele caminhou pelo corredor, chegou à escada e logo estava em seu topo, onde viu Rebecca olhando para ele exatamente como se soubesse que ele viria; e o mais singular de tudo era que, embora estivesse consciente de que não tivera nenhuma intenção de recorrer a ela e de que fôra somente impelido instintivamente a acalmar-se pela fuga, vê-la naquela atitude fez com que ele percebesse que não fora por acaso e nem com rumo incerto a sua fuga, e assustado a sentisse como parte de alguma opressão monstruosa e misteriosa que estava em curso. Observou Rebecca, aquela mulher alta e em negro que formava uma impressionante e teatral imagem com aquele ambiente londrino, entre os tapetes de Tottenham Court Road e a luz elétrica, e veio-lhe a impressão de que ela sabia o significado de tudo. Ela o conduziu até sua sala particular e lá, com a porta fechada, eles se confrontaram, ainda em silêncio e com uma expressão estranha nos rostos. Withernmore: "Ele esteve com você? O que você imagina estar acontecendo?" E não pôde deixar de observar a sala na qual, noite após noite, ela estivera a viver sua vida do mesmo modo que ele estivera vivendo a sua. Era um ambiente muito amplo, de certa beleza, estranho, ostentoso, um tanto decadente, onde predominava a cor púrpura escuro. E ele continuou: “Você compreendeu que ele me abandonou?”

Rebecca: “Sim, sim...”
Um súbito clarão lhe veio à mente: "VOCÊ SABIA QUE EU VIRIA!!!"

Ela, deliberadamente, levou alguns segundos para responder, praticamente falando para si própria:
“Então você veio mesmo... perfeito."

E ele, perturbado: 
"O que está acontecendo, por Deus?"

Ela falou, num tom solene, muito seguro e incisivo:
“Eu apenas quero, e vou, fazer algo realmente importante”.

Withermore:
“E nós não o estamos fazendo?”
Ela silenciou.
Ele prosseguiu: "Eu faço o melhor que posso, creio eu. Mas precisamos pensar.”
"Você acha? Pois na minha opinião, já pensamos o suficiente, já pensamos até demais... EU já pensei tudo que tinha que pensar" - falou ela, num tom baixo e misterioso.
Ele começou a ficar apreensivo; era uma situação muito estranha.
Então ela deixou escapar sem querer, num impulso impensado: "Ashton e eu estávamos separados. E muito antes de sua morte."
"Por quê?!!"- ele agora estava certo de que havia algo de muito importante e grave a descobrir, e tinha que ser o mais rápido possível, não havia um segundo a perder. 

Ela não falou nada.
Ele agora estava muito nervoso, com pressa. Porém, queria saber mais de Rebecca. 
Ela, enigmática: "Você não vai mais escrever a biografia de Ashton. Nunca mais."

Alertado por sua sensitividade, ele ficou lívido e gelou. Uma grande profusão de ideias lhe vieram à mente, desencontradas, todas elas terríveis e sinistras. Mas sua percepção não lhe disse mais nada, seu espírito estava muito confuso.  
Rebecca, agora, tinha um meio sorriso estranho no rosto, e falou, com um prazer sádico que por alguma razão nem tentou disfarçar:  
"Ele está aqui. Mais do que nunca. E veja só, você também está aqui!" E soltou uma risada assustadora, como que deliciada, perversamente deliciada. Ato contínuo, ela levantou-se e foi rapidamente até uma estante, onde abriu uma gaveta e retirou dali um objeto. A percepção de Withermore veio com intensidade, e imediatamente soube que ela estava pegara um punhal enorme de magia negra, escondido em um pedaço de veludo roxo. Ela voltou-se e repetiu, cortante, devagar, pronunciando bem cada palavra: 

"Você... não... vai... escrever... a... biografia. ENTENDEU?"
Porém, Withermore já não estava mais ali. Tinha saído correndo, o mais rápido que suas pernas permitiam. Foi até o escritório, onde tinha certeza de que encontraria Doyne. Tentou desesperadamente fazer contato com ele, que logo sentiu a angústia do amigo e manifestou-se:
"O que há, meu amigo?"

Withermore: "Você e eu estamos correndo perigo. Vamos sair daqui!!!"

Doyne: "Oh, Deus... Diga-me, é aquela mulher diabólica, não é? Nem agora me deixa em paz... Maldição... Não posso mais suportar isso..."

Withermore quase gritou, em desespero:
"Vamos embora daqui, rápido!!!!"
Mas de repente, não sentia mais a presença do amigo, tinha sumido completamente. Congelou de medo e sentiu-se paralisado, impotente. O que fazer agora, Deus do céu?!!!

Então ouviu de algum lugar da casa Rebeca dizer alguma coisa incompreensível, com voz bela, sedutora e aliciante. Houve um breve silêncio, e então... um grito tenebroso: "NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃO!!!!"

Sem pensar direito, saiu correndo pela casa, cheio de pavor.

Encontrou Rebecca no degrau térreo da escada, toda ensanguentada e inerte - a aparência de uma uma mulher muito velha e cadavérica.

 

 

Winona Gary


A NOIVA

Southhampton, Inglaterra, minutos antes da cerimônia de casamento de Violet Saunders, que, nervosa, chorando muito, ainda não se encorajou a sair de casa. 

- Não fique assim, minha filha. Eugene Crowell é um bom homem, sua mãe e eu te asseguramos. Cuidará de você, vai amá-la muito, dar-te-á coisas que nunca pudemos comprar.

- Mas pai, você sabe muito bem que eu não o amo! Era para outro que eu entregaria meu coração...
- Eu sei, Violet, eu sei. Mas pela milionésima vez eu tenho que dizer que aquele rapaz não tem condições. Vocês viveriam na penúria, passariam necessidades,  discutiriam por dinheiro, por qualquer besteira, e o amor logo acabaria, confie em nós, confie em nossa experiência. Você sabe que jamais faríamos qualquer coisa para deixá-la infeliz.
A jovem cobria os olhos com as mãos, não querendo encarar seu infeliz destino.
- Olhe-se no espelho, querida. Está tão linda nesse vestido maravilhoso, está um sonho! Agora enxugue essas lágrimas, porque vão estragar sua maquiagem, e Eugene não vai gostar de recebê-la no altar assim tão triste.
- Para o inferno com ele! Eu preferiria morrer...
- Vamos, Violet. Faça isso por mim e por sua mãe... e por você também, tenha certeza.

A Marcha Nupcial começou a tocar, linda e solenemente, anunciando sua entrada na igreja. Ela disfarçou a tristeza o máximo que pôde e entrou, belíssima, com passos lentos e flutuantes, e o pai logo a tomou pela mão. Violet percebeu todos os olhares da imensa catedral voltados para ela e isso lhe fez sentir ainda mais o peso de sua infelicidade, do compromisso irreversível que estava assumindo. Conforme avançava pelo tapete, mais se sentia condenada, como se estivesse indo para o cadafalso. O noivo, num belo e elegantíssimo traje preto, abriu um sorriso ao receber a jovem. Era um homem muito bonito e aristocrático, com um forte ar de virilidade misturado à sua classe e distinção, muito seguro de si, gestos lentos e deliberados, um rosto de traços nobres e um ar reservado que aumentava o seu carisma, tornando-o verdadeiramente encantador, magnético.
O pai:
- Cuide bem dela. É a minha jóia mais preciosa.
- Não se preocupe, senhor Saunders. Vou tratá-la melhor, muito melhor do que a uma princesa - respondeu, com sua voz grave e profunda, palavras lentas, pausadas, seguras.
Quando ele levantou o véu, Shelley olhou o homem à sua frente e ficou hipnotizada com o que viu: sua extrema

elegância, seu encanto incomum, irresistível, seu olhar profundo que a olhava direta e intensamente. Começou a pensar que, afinal, até que poderia ser feliz naquela união. Tudo tomou novo encanto para ela: a luz das velas nos candelabros, a decoração magnífica, o aroma das flores, a música perfeita tocada em um órgão de tubos, os objetos de ouro sobre o altar, a túnica púrpura do celebrante, os detalhes entalhados nos móveis de madeira, a magnífica igreja, os convidados em atitude expectante, a beleza do casal que formava com aquele homem tão especial... tudo contribuía para tornar aquele instante muito intenso, inesperadamente feliz, quase mágico. Eles viajariam para os Alpes Suíços em lua-de-mel, mas passariam a noite de núpcias em sua nova casa. A recepção também estava maravilhosa, cada detalhe escolhido meticulosamente para ser perfeito. Como é de se prever, os dois não esperaram o fim da festa e se dirigiram ansiosos, ela quase flutuando de tanto encantamento, para a sua nova morada. Violet já sentia algo por ele (na verdade, foi quase que de imediato), que poder-se-ia descrever como um nascente afeto mais muita atração física. Mal puderam esperar para se entregarem um ao outro. Ele tirou o vestido da amada lenta e

suavemente, apesar da avidez de seu desejo. Após isso, tirou suas próprias roupas. Aquele homem era perfeito em cada detalhe, em cada gesto, e ela sentia o desejo aumentar cada vez mais. Ele a colocou delicadamente sobre a cama, observou seu corpo lindo, curvilíneo, branco e macio, tocou levemente, amorosamente, seus seios perfeitos, com um meigo olhar de admiração. Acariciou-lhe as faces, foi com o rosto lentamente até ela e por fim começou a beijá-la, suave e sensualmente. Primeiro em sua nuca; depois em cada parte do rosto; até que chegou à boca, onde só pousou delicadamente os lábios, mas de tal forma sensual que deixou-a ainda mais louca de desejo. Então dirigiu a boca a seu pescoço, e o beijo foi se tornando sequioso, mais forte, apaixonado. Sugou-lhe o pescoço, mordiscou-o, usando a boca, a língua e os dentes experientes, então mordeu mais forte, a ponto de arrancar-lhe sangue. Violet sentiu um pouco de dor, mas pouco se importou: sentia-se no paraíso, em outra dimensão. Eugene, enquanto a continuava tocando, abraçando e beijando de todas as formas, provocando-lhe as mais intensas e deliciosas sensações, por fim penetrou-a, primeiro muito de leve, depois, aos poucos, cada vez mais profundamente. Ela soltou um gemido entre dor e prazer, e foi se entregando àquele momento maravilhoso, soltando-se cada vez mais. Tudo agora era só paixão e êxtase. Enquanto isso, Eugene, satisfeito e com uma expressão estranha e misteriosa, via o rosto e o corpo brancos de Violet, agora mais pálidos ainda - muito mais pálidos. 

E pensou o conde Eugene Crowell: agora para toda a eternidade.

 

 

Manicômio

 

A AUTORA

O talentoso escritor James Caldwell já há cerca de três meses vinha escrevendo seu quinto livro, mas agora estava atravessando uma daquelas fases de paralisia criativa, as ideias quase não lhe vinham, sua mente parecia um deserto. Nas raras vezes em que conseguia alguma disposição para sentar e escrever, torcia e retorcia a mente, buscando o que de melhor pudesse encontrar, mas cada parágrafo era escrito com muito esforço, e ainda assim deixava muito a desejar: os textos saíam duros, sem fluência, sem graça ou estilo. Vezes sem conta jogou no lixo bolas de papel com páginas inteiras escritas. E os momentos de escrever, que sempre lhe foram prazerosos, agora eram arrastados, monótonos, sem graça, o tempo parecia custar a passar. Ele tentava melhorar seu estado de espírito bebericando vez por outra alguns goles de poire. Mas já estava bastante desanimado, quase desistindo de escrever até que a inspiração lhe voltasse.

Mas, como sempre acontece, de repente, sem aviso prévio, a abençoada inspiração retornou. Porém, desta vez veio com tal força e profundidade, os pensamentos tão velozes, que James Caldwell resolveu isolar-se no escritório de casa para melhor colocar aquela profusão de ideias no papel. E assim, durante cinco dias e cinco noites, não interrompeu a escrita nem para comer ou dormir. A mão só descansou quando a derradeira frase encerrou o texto com maestria. "Minha obra-prima!", exclamou para si mesmo, exausto, ao pingar o ponto final. Relendo aquelas centenas de páginas finalizadas, empolgava-se mais a cada frase. "Minha nossa, mas isso está muito bom! Nem parece que foi escrito por mim!", pensou. E então, para seu grande espanto, ouviu uma voz feminina longínqua, lamentosa, vinda de lugar indeterminado:

"E não foi mesmo..."
Ele gelou de medo.
- O quê? Quem disse isso?
Não via nada, só ouvia a voz, taciturna, dando a impressão estranha e apavorante de diversas vozes dissonantes e meio roucas ao mesmo tempo.

"Esse livro é meu" - a voz disse. "Você só foi a mão que segurou a pena. Sou a verdadeira autora".

James agarrou-se ao manuscrito, ainda mais impressionado.
- Quem é você? O que quer?
- Chamo-me Miss Audrey Sheridan, e este é o nome que deve constar na capa do livro.
Desesperado, James implorou: - Pelo amor de Deus, diga-me, estou ficando louco? Existe realmente alguém aí?
- O livro é meu... - repetiu a voz, em tom monótono.
James estava paralisado de pavor. O que estaria acontecendo? Era uma aparição? Estaria enlouquecendo? Rezou em voz alta:
- Senhor, defendei-me! Não sei o que está acontecendo... sinto muito medo...
- Quero meu livro - a voz só repetia, insistente.
Até que James, confuso, atordoado, sem saber direito como agir, gritou:
- NÃO! O AUTOR SOU EU!!!

A voz continuou, no mesmo tom arrastado, estranho e indefinivel:
- Essa é a minha história. Fui eu quem a ditou nos últimos cinco dias.
James sentiu o ar lhe faltar e seu coração bater muito rápido. Saiu correndo, tomado de pânico, desnorteado, meio trôpego, sem rumo, com os olhos fechados, como se dessa forma pudesse talvez se proteger de algum perigo. Correu até cair no grosso tapete da sala de estar, desfalecido.

Foi encontrado por um empregado na manhã seguinte, completamente transtornado, como que tentando se defender de centenas de pessoas invisíveis ao seu redor que estariam lhe perseguindo e ameaçando, e gritava alto para o nada:
"FUI EU! QUEM ESCREVEU FUI EU!!!!" - era o que ele repetia sem parar, quando funcionários de uma casa de repouso vieram lhe buscar.

 

 

Gato siamês

 

GATA RAINHA

- Ah, Vicky, eu gostaria tanto de te apresentar Betsy, a minha gatinha siamesa. Sabe, desde o momento em que a vi, no lar de animais abandonados, nasceu uma afeição muito forte entre nós dois, difícil mesmo de explicar. Lembro que naquele tempo eu queria muito um gato, que de quebra me faria companhia. E com aquela beleza, fofura, elegância felina, coroada por lindos olhos azuis e pêlos prateados, acho que fiquei hipnotizado. Nem dei atenção aos outros gatos disponíveis. Desde então passamos a morar, ela e eu, em meu apartamento. No prédio há quem me censure, dizendo que não é recomendado ter um gato em casa, porque transmite asma e outras doenças. Mas Betsy não tem nada disso. Ela é a gata mais limpa e saudável que existe. Tenho muito luxo com ela: só come da melhor comida, tem uma caminha muito limpa e confortável para dormir, toma todas as vacinas e, acima de tudo, recebe muito carinho de seu dono. 

- Sabe, Vicky, você também é linda, elegante e sensual, já te disse? Olha, tenho certeza de que vai achar minha Betsy muito linda e fofinha. Queria que você visse quando eu pego uma varinha para atormentá-la. De brincadeira, é óbvio. Ela fica maluca, dando aqueles tapinhas tão bonitinhos como os gatos fazem. O que mais gosto de ver, nessas horas, é quando ela mostra as unhas, agarra a ponta da varinha e a leva até a boca. Mas essa é só uma das brincadeiras que fazemos. O que ela mais ama mesmo é ficar se roçando em mim. Basta eu chegar em casa para Betsy sair de onde estiver e vir correndo até minhas pernas, ronronando, implorando por carinho. Quer conhecê-la hoje? Agora mesmo? Ah, eu sabia que você não ia resistir. Quando descobri que você também amava gatos, fiquei muito contente. E se a minha Betsy gostar de você, vai ser melhor ainda. Venha, vamos conhecer minha casa. Vou pagar a conta e já volto. 

- O que achou do restaurante, Vicky? É, eu também gostei muito. Pena que eles não permitem levar as sobras para viagem. Betsy adora salmão. Bem, a noite está ótima, e não se pode ter tudo o quer, não é? Olha, só não estranhe caso ela pareça um pouco fria quando a gente chegar. É ciúme, o que é totalmente normal. Minha última namorada não foi aprovada pela minha gata. As duas viviam se estranhando, como se uma achasse que perderia o lugar para a outra. E foi por isso que desta vez procurei alguém que gostasse de gatos. Veja, este é o meu prédio. Vamos chegar falando baixinho, porque depois das 10 é proibido fazer barulho. 

- Fique à vontade, Vicky. Gosta de vinho? Tenho um cabernet especial aqui, acho que vai adorar. Mas deixe-me te contar um sonho muito estranho que tive com Betsy certa vez. Sonhei que ela miava desesperada para a Lua cheia, como se estivesse pedindo algo. Tive a sensação de que ela estava prestes a parir filhotes, ou algo assim, o que não seria nada mal. Imagine só que lindos seriam os gatinhos siameses! Mas ela não estava prenha... Depois passou a gritar muito alto. O sonho parecia muito real, e fiquei muito assustado assustado quando ela começou a se contorcer no chão da cozinha e a arregalar os olhos. Eu não conseguia me mexer e também não acordava para dar fim àquele pesadelo. Que piorou mais ainda. De repente, o corpo de Betsy foi se esticando. Cada pedacinho dela foi crescendo, enquanto ela uivava de dor. A impressão que me deu foi a de um lobisomem se transformando, só que ao contrário. Era um gato virando gente!

- É, Vicky, eu te falei que foi um sonho muito esquisito. Logo depois daquela cena chocante no meu pesadelo, vi estirada no chão uma criatura muito próxima de um ser humano. Tinha formas femininas, porém era coberta de pêlos por todo o corpo e tinha unhas afiadas. Só não pude ver o rosto, porque estava virado para o chão. Mas era uma mistura de mulher e gato. Louco, não? Quando acordei na manhã seguinte, pensei: “Bom, devo ter comido demais e isso me provocou o pesadelo". E assim que levantei fui correndo procurar Betsy, preocupado, temendo que ela pudesse estar mal. Mas para meu alívio ela estava lá na cozinha, bebendo leite no seu pires e lambendo as patinhas, tranquila e bonitinha como sempre. Foi uma visão dos céus saber que ela estava bem. Só não a peguei e abracei porque ela não costuma reagir bem a interrupções em suas refeições. 

- Mas Vicky, aceita mais um vinho? Prometo que é só esse e depois te levo para casa. Conte mais sobre você. E... não me canso de dizer, você é tão linda... sabe que esse vestido foi feito pra você? Realça cada forma do teu corpo... tão sensual... e a cor te deixa luminosa... e nesta penumbra, te vejo com um ar meio misterioso, sutil, quase mágico... parece um sonho... Ah, Vicky, só nós dois... Eu te quero tanto... Estou tendo que me controlar muito, só porque te prometi.

- Já terminou seu vinho? Ótimo, deixa só eu pegar as chaves do carro e vamos indo. Prontinho.

- Vicky... Está tudo bem aí no sofá? Consegue me ouvir? Está vendo minha mão acenando na frente dos seus olhos? E esse beliscão, sente? Não? Nadinha? Maravilha! Ninguém ia querer que você gritasse. Esses vizinhos são muito chatos, são capazes de chamar a polícia! Foi por isso que coloquei um remedinho na sua taça. Agora você pode ver tudo, mas não conseguirá se mexer, nem gritar. Já deve estar quase na hora da Betsy. Eu amo essa gata mais que tudo, sabia? 

- Mas o que é isso, Vicky, está assustada? Por quê? HAHAHAHAHAHAHAHA... (riu, com ar sinistro e sádico.) O que é isso, não fique assim... Pouca gente teve a oportunidade de presenciar o que você vai ver agora. Fique deitadinha aí que eu já volto com a minha gatinha. Vol-ta-mos! Minha Betsy não é ainda mais linda quando assume essa forma? O quê? Vai dizer que não sabia que nós, homens, nos encantamos com uma mulher-gato? Talvez este não seja ainda o padrão de beleza criado pela mídia, com todo esse pêlo no corpo, os dentes pontudos, as garrinhas nos dedos e o focinho achatado. Mas pense bem: foram quase três séculos sendo uma gata, tendo que tantas vezes revirar o lixo para se alimentar! É difícil voltar ao normal assim, do dia para a noite. O corpo humano é muito complexo! Requer muito sangue nas veias.

- É por isso, Vicky, que você está aqui hoje. Betsy precisa de algumas coisinhas suas para poder deixar de ser definitivamente um animalzinho e voltar a ser um mulherão. Talvez você sinta alguma dor... na verdade, MUITA dor, mas você não vai se importar, não é? É para o bem do seu querido Albert... HAHAHAHAHAHAH (aquela risada de novo, de arrepiar.)

- Vem, Betsy! Aproveita que a nossa convidada está bem acomodada no sofá.